Num.° 5. Anónimo (Bento Morganti) Moralische Wochenschriften Klaus-Dieter Ertler Herausgeber Hans Fernández Herausgeber Elisabeth Hobisch Mitarbeiter Pascal Striedner Mitarbeiter Sarah Lang Gerlinde Schneider Martina Scholger Johannes Stigler Gunter Vasold Datenmodellierung Applikationsentwicklung Institut für Romanistik, Universität Graz Zentrum für Informationsmodellierung, Universität Graz Graz 04.10.2018 o:mws.7013 Anónimo (Morganti, Bento): Terceira Collecçam dos Papeis Anonymos. Lisboa: Pedro Ferreira, 1754, 37-44 O Anonymo. Repartido pelas semanas, para divertimento e utilidade do publico 3 005 1754 Portugal Ebene 1 Ebene 2 Ebene 3 Ebene 4 Ebene 5 Ebene 6 Allgemeine Erzählung Selbstportrait Fremdportrait Dialog Allegorisches Erzählen Traumerzählung Fabelerzählung Satirisches Erzählen Exemplarisches Erzählen Utopische Erzählung Metatextualität Zitat/Motto Leserbrief Graz, Austria Portuguese Sitten und Bräuche Costumi Manners and Customs Costumbres Mœurs et coutumes Costumes e Tradições Vernunft Ragione Reason Razón Raison Razão Portugal -8.13057,39.6945

N.°. 5 Utilidades do Vinho,

Como estamos no entrudo, he justo que vamos tambem com o tempo; porque todas as couzas devem seguir de alguma sorte o uzo vulgar, e comum. Quando de ordinario todos padecem suas demazias, e excessos, naõ parecerá bem que eu queira ser austero, e tam sobrio que enfado aos meus Leitores, e assim me parece a proposito falar alguma couza sobre o vinho, ou pelo menos referir o que a este respeito pratiquei com hum destes cultores de Bacho, que ao mesmo tempo era Sacerdote de Ceres, em certa occaziaõ que concorri com elles na mesma solemnidade a que somos convidados. Naõ he o meu intento aprovar as demazias que ordinariamente se practicam, como se houvesse alguma separaçam de tempos em que seja licito o peccado da gula, mas sim desculpar de algum modo maes prudente, e menos rigido, o excesso de algumas pessoas que correndo em seguimento do gosto perdem o tino da razam, para que ao menos tenham algum documento para a sua defeza; pois naõ ha couza que deixe de ter seu patrocinio ou solido, ou aparente, sem nos esquecermos de que o que socede por acazo, e raras vezes naõ destroe a regra geral, e ordinaria que nunca fica menos solida, pelos successos, e exemplos que se encontraõ por acazo, e com raridade. He precizo, e quasi necessario este pequeno exordio, para fugir das garras dos que se ostentam regulados, e inteiramente sobrios neste tempo, pois vendo que escrevo para todos indiferentemente doctis, in doctisque se podem persuadir, que eu tambem estando preocupado com algum fumo espirituozo, entro a destilar alguma doutrina contraria aos bons costumes, querendo patrocinar o vicio da Gula, e de clamar contra a virtude da abstinencia, sobriedade, e parcimonia, pois ha muita gente, e ainda da (sic) que se inculca douta, que recebe indiferentemente, e sem reflexam as primeiras impressoens do que lê, e ouve, sem maes consideraçaõ ao tempo, ao modo, e à substancia. Baste de satisfaçaõ, vamos aos pratos, e ao copo, que naõ saõ más armas para esgremir contra o rigor da estaçam.

Huma das couzas que mais se inculcam no mundo he a sobriedade, e todos os que affectam ser abstinentes concebem (nam sei se na aparencia) hum horror exquisito contra os que practicam alguma frugalidade na vida: mas eu por experiencia propria, e ocular tenho muitas vezes observado que estes mesmos Anti-estomacharios sam os que melhor comem, e da mesma sorte bebem, e sómente declamam por se nam a fastarem da ordenança que entre si conservam como leys de huma hypocrisia verdadeira, e preceitos para firmarem huma virtude falsa. He na verdade para cauzar rizo, ver (como tenho visto algumas vezes) huns destes sobrios em publico injuriar, e carregar de opprobios aquelles que em occaziam de algum banquete, ou sociedade de amigos se entregam a algum excesso, tanto em comer, como em beber, e quasi que chegam a mostrar que se envergonham de se achar na sua companhia, quando no retiro da sua caza, e no particular da sua meza pode ser que continuadamente practiquem estes mesmos desmanchos, que tanto em publico desconcertam o seu sofrimento, e alteram as leys da prudencia civil, que deve tolerar o que nam póde prohibir, e o que universalmente se naõ reprova. Hum destes dias de entrudo me achei na companhia de varias pessoas a quem o dono da caza comprimentou com hum esplendido, e delicado jentar, comeose muito bem, e bebeose muito melhor, e como os copos sam como as palavras, ao menos porque entram huns por donde as outras sahem, assim como huma puxa pela outra, tambem os copos se foram insiando ao fim, jà havia tal que quasi nam sabia a donde estava. Levantamo nos (sic) da meza, fomos passear para a quinta, e asociose comigo hum dos mesmos convidados a quem o vinho naõ tinha feito tanto danno, por se achar mais familiarizado com elle, e como se persuadia que estava em melhor estado de conhecer o defeito alheo, me foi arrumando quasi huma satyra contra os mesmos amigos a quem o vinho tinha feito pelo descosume algum danno. Como era depois de jentar, naõ estava com a memoria muito feliz para reter practicas, principalmente de semelhante natureza, mas com tudo sempre me lembraõ algumas couzas do que o meu companheiro me foi, ou dizendo, ou vomitando, que tudo podia ser. Principou com documentos Medicos dizendo que assim como a parcimonia he muito conducente para se conservar a saude do corpo, tambem concorre muito para a perfeiçam do entendimento, porque fas os espiritos mais limpos, e maes puros, e por isso mais virozos para a percepçam das operaçoens intelectuaes; e que as funçoens da memoria melhor se executam com a abstinencia, do que com a demazia. Passou logo ao espiritual, e se se (sic) lembrou do Capitulo de S. Pedro, quando recomendou a seus irmãos, que se conservassem sobrios, e por isto vigilantes para que assim se podessem acautelar dos enganos do inimigo commum. Fratres sobrii estote, vigilite, e que por isso os Padres no Ermo do Egypto se contentavam com hum tenuissimo alimento, para com alegria se entregarem todos ao exame das couzas Divina. E por ultimo deo consigo na Moral, e na Politica dizendo que o ser sobrio produzia huma excellente utilidade, e o comprovou com o exemplo de Socrates, de quem disse Xonophonte que era de muito simples, e parco alimento, o que lhe foi tam util, que Eaercio refere na sua vida, que sendo Athenas varias vezes acometida de huma grande peste, em todas ficou sempre Socrates izento, o que se atribuio ao effeito da sua parcimonia, e sobriedade; e que o mesmo testemunhavam os exemplos de muitos Santos a quem oculto da abstinencia fez invenciveis a todas as tentaçoens dos sentidos; porque assim como fine Cerere, Baechofriget Venus tambem todos os movimentos irregulares, e dezordenados do animo por virtude da sobriedade entorpecem, e perdem quasi toda a sua força irregular: e disto procede que muitas naçoens que a practicam sam menos sogeitas a esta irregularidade de affectos, como sam os Chinas, alguns Africanos, e os de Italia, do que as outras que inteiramente se entregam aos excessos da Gula. E por ultimo cuido que concluio dizendo que o Vinho bebido com demazia, principalmente quando he generozo, parece ser muito prejudicial para as funçoens da alma, porque sendo de sua natureza muito vaporozo, confundindo o calor, e a humidade ofusca, e altera a luz dos espiritos.

Eu que jà andava passeando sobre posse, e aborrecido de ouvir a sua missam, vendo que toda ella se encaminhava directamente a carregar os amigos, tomei hum pouco de fogo, e quiz cõ elle rebater esta sua fingida caridade, e sucedeo lembrarme por acazo (que àquellas horas tambem poderia ser por milagre) de algumas couzas que tinha lido, e me introduzi sem que elle o esperasse, na defensa daquelle chamado excesso.

Convenho em ser verdade tudo quanto a esse respeito se diz; mas com licença de Vm. e de outros semelhantes declamadores, assento em que nam he o excesso de comer, e beber tam universalmente prejudicial ao espirito, e ao engenho dos homens, como muita gente se persuade. Porque ainda que a cautella em comer, e beber conduza muitas vezes para se aperfeiçoar o engenho, e sublime, que sam de hum bom comer, e muito melhor beber, e que huma, e outra intemperança socorre, e ajuda muito o seu entendimento. Nam se assustem com esta expressam, que muitos podem conceber por irregular, pois eu lhe dou a razam, que se funda em bons principios. Fazem se os homens vorazes, e comiloens pelo vigurozo, e forte calor do estomago, que elabora, e rezolve com brevidade admiravel tudo quanto nelle se introduz, pelo que fica logo o estomago dezejando o socorro de novo alimento, como se observa nos Alemaens, nos que trabalham, e nos rusticos: ainda que muitas vezes póde proceder tambem da nimia frialdade do mesmo estomago, que densando, e encrespando o seu inferior orificio, espreme, e extingue os humores, a que se segue o dezejo do alimento, e por consequencia a fome: o que muitas vezes sucede aos homens estudiozos, e doutos que pela vida se dentaria (sic) contrahem certas obstruçoens nas entranhas, pelas quaes se danifica o calor natural, e se augmenta o estranho, e excitando-se algumas evaporaçoens secas, e adustas que correm para o cerebro, despertam a fantezia, e ramificam as virtudes, ou forças intellectivas. He bem verdade que devo confessar para proceder de boa fé, que nacendo isto de huma cauza accidental, como he a obstruçam, o engenho de semelhantes homens, he ordinariamente desigual, disconcordante, vario, e pouco seguro, e por estas razoens nam he tam bom como o daquelles que tem hum corpo sam, e que nam he sogeito a esta cauza accidental.

O mesmo que digo dos que comem muito, se póde affirmar tambem dos que bebem com demazia: porque nam deixa o vinho de conduzir muitas vezes para beneficio do engenho, e despertar o entendimento dos homens (diga cada hum o que quizer) tal vez que em razam de algumas partes subtiz, e seccas que nelle existem, e por esta cauza se observam com a demazia do Vinho muitas alteraçoens repetidas, e promptas nos espiritos, e no animo, as quaes muitas vezes sam excelentes. De Homero refere Horacio, que elle só basta para comprovar os louvores do Vinho:

Laudibus arguitur vini vinosus Homerus.

E em outro lugar diz que nunca o Poeta Ennio compunha melhor se naõ quando se achava a comettido com a enfermidade desta gotta.

Ennius ipse pater nunquam nisi potus ad arma

Prosiluit dicenda.

Do Poeta Anacreonte cantou Ovidio.

Sit quoque vino si Theia Musa Senis.

Nem sómente nos Poetas se reconheceo esta utilidade, mas ainda em muitos Oradores antigos, e modernos se pode sem mentira affirmar o mesmo: Naõ falo, nem me quero lembrar dos modernos, porque pode haver ainda a memoria fresca de alguns, que sirvam mais de escandalo, que de exemplo, e o meu intento naõ he vituperar mas sim deffender, principalmente quando se trata de circunstancia que no conceito de muitos tem adquirido o grao de odioza, e basta comprovarmos isto com hum dos melhores, e mais elevados dos oradores antigos, que foi Catam menor, de quem o mesmo Horacio disse:

Narratur prisci Catonis

Saepe mero calusse virtus.

E em outro lugar:

Fecundi calices quem non fecere difertum.

Se assim se conheceo nos Poetas, e Oradores, tambem nam deixou de ter o seu lugar nos Filosofos, e ou nos homens grandes. Aristippo hum dos maes doutos, e melhores politicos, nam frequentava a meza dos Principes se nam pelo vinho, e pela profuzam dos alimentos; o que deo motivo a chamarlhe Diogenes Cam Regio. Xenorates por absequiar a Dyonysio, dizem que enxugara huma pipa. Isto nam deixou de concorrer muito para augmentar o valor em Hercules, e Ulysses, como refere Celio. Nam foi menos practicada esta demazia por aquelle Alexandre a quem todo o mundo nam pode negar o renome de Grande; e por aquelle Emperador Romano chamado Tiberio, a quem inclinaçam para o vinho converteo o nome em Biberio. Nam podemos dizer que o vinho demaziado he nocivo, e prejudicial ao engenho, quando lermos em hũa Epistola de S. Jeronymo, que o mesmo Aristoteles universalmente aplaudido por grande, era hum dos maiores devotos de Bacho, e em Suidas, que era o mesmo Aristoteles demaziadamente apaxonado por Ceres.

Finalmente nam se deve tanto censurar a demazia do vinho que nam tenha sua limitaçam, porque bem se pode hum homem embedar (falemos claro) sem que por isso seja bebado, o costume he que deve ser reprehendido, eo que fas vida de andar continuamente borracho. O mesmo Seneca nam reprova de quando em quando fazer a este respeito maes alguma largueza, porque escrevendo da tranquilidade da vida, dis que huma destas ocazioens sendo interpolada, n õ he absulutamente inutil, e a razam pòde ser a que dá Dioscorides, porque tomando-se depoes (sic) do vinho alguma porçam, principalmente de agoa, expurga os excrementos dos sentidos, e purificandoos ficam mais perfeitos, e capazes de melhor operaçam, e o seu conciliador commentando o primeiro problema da fessam 28 recomenda muito huma, ou duas destas occazioens em cada mes. E se podemos dar credito a Atheneo, acharemos que Mithridates dava em premio aos bebedores hum talento de prata, que na quelle tempo era huma somma consideravel, que tanto se estimava entam esta galantaria.

Como se fazia tarde, com isto acabei a minha defensa em favor dos amigos, eo meo (sic) austero nam ficou muito contente com esta repulla, mas a mim me nam deo muito cuidado, qualquer que fosse o conceito que elle de mim ficou fazendo; dispedime delle, vime embora e bem vi que lá ficou resmungando, e sabe deos o que diria aos amigos com quem depoes conversou nesta materia. Faça cada hum o que lhe parecer melhor, que eu naõ quero morrer pelo povo, e só o credito dos meus amigos he que me obrigou a defender tanto o seu partido.

Lisboa:

Na Officina de Pedro Ferreira, Impressor da Augustissima Rainha Nossa Senhora.

N.°. 5 Utilidades do Vinho, Como estamos no entrudo, he justo que vamos tambem com o tempo; porque todas as couzas devem seguir de alguma sorte o uzo vulgar, e comum. Quando de ordinario todos padecem suas demazias, e excessos, naõ parecerá bem que eu queira ser austero, e tam sobrio que enfado aos meus Leitores, e assim me parece a proposito falar alguma couza sobre o vinho, ou pelo menos referir o que a este respeito pratiquei com hum destes cultores de Bacho, que ao mesmo tempo era Sacerdote de Ceres, em certa occaziaõ que concorri com elles na mesma solemnidade a que somos convidados. Naõ he o meu intento aprovar as demazias que ordinariamente se practicam, como se houvesse alguma separaçam de tempos em que seja licito o peccado da gula, mas sim desculpar de algum modo maes prudente, e menos rigido, o excesso de algumas pessoas que correndo em seguimento do gosto perdem o tino da razam, para que ao menos tenham algum documento para a sua defeza; pois naõ ha couza que deixe de ter seu patrocinio ou solido, ou aparente, sem nos esquecermos de que o que socede por acazo, e raras vezes naõ destroe a regra geral, e ordinaria que nunca fica menos solida, pelos successos, e exemplos que se encontraõ por acazo, e com raridade. He precizo, e quasi necessario este pequeno exordio, para fugir das garras dos que se ostentam regulados, e inteiramente sobrios neste tempo, pois vendo que escrevo para todos indiferentemente doctis, in doctisque se podem persuadir, que eu tambem estando preocupado com algum fumo espirituozo, entro a destilar alguma doutrina contraria aos bons costumes, querendo patrocinar o vicio da Gula, e de clamar contra a virtude da abstinencia, sobriedade, e parcimonia, pois ha muita gente, e ainda da (sic) que se inculca douta, que recebe indiferentemente, e sem reflexam as primeiras impressoens do que lê, e ouve, sem maes consideraçaõ ao tempo, ao modo, e à substancia. Baste de satisfaçaõ, vamos aos pratos, e ao copo, que naõ saõ más armas para esgremir contra o rigor da estaçam. Huma das couzas que mais se inculcam no mundo he a sobriedade, e todos os que affectam ser abstinentes concebem (nam sei se na aparencia) hum horror exquisito contra os que practicam alguma frugalidade na vida: mas eu por experiencia propria, e ocular tenho muitas vezes observado que estes mesmos Anti-estomacharios sam os que melhor comem, e da mesma sorte bebem, e sómente declamam por se nam a fastarem da ordenança que entre si conservam como leys de huma hypocrisia verdadeira, e preceitos para firmarem huma virtude falsa. He na verdade para cauzar rizo, ver (como tenho visto algumas vezes) huns destes sobrios em publico injuriar, e carregar de opprobios aquelles que em occaziam de algum banquete, ou sociedade de amigos se entregam a algum excesso, tanto em comer, como em beber, e quasi que chegam a mostrar que se envergonham de se achar na sua companhia, quando no retiro da sua caza, e no particular da sua meza pode ser que continuadamente practiquem estes mesmos desmanchos, que tanto em publico desconcertam o seu sofrimento, e alteram as leys da prudencia civil, que deve tolerar o que nam póde prohibir, e o que universalmente se naõ reprova. Hum destes dias de entrudo me achei na companhia de varias pessoas a quem o dono da caza comprimentou com hum esplendido, e delicado jentar, comeose muito bem, e bebeose muito melhor, e como os copos sam como as palavras, ao menos porque entram huns por donde as outras sahem, assim como huma puxa pela outra, tambem os copos se foram insiando ao fim, jà havia tal que quasi nam sabia a donde estava. Levantamo nos (sic) da meza, fomos passear para a quinta, e asociose comigo hum dos mesmos convidados a quem o vinho naõ tinha feito tanto danno, por se achar mais familiarizado com elle, e como se persuadia que estava em melhor estado de conhecer o defeito alheo, me foi arrumando quasi huma satyra contra os mesmos amigos a quem o vinho tinha feito pelo descosume algum danno. Como era depois de jentar, naõ estava com a memoria muito feliz para reter practicas, principalmente de semelhante natureza, mas com tudo sempre me lembraõ algumas couzas do que o meu companheiro me foi, ou dizendo, ou vomitando, que tudo podia ser. Principou com documentos Medicos dizendo que assim como a parcimonia he muito conducente para se conservar a saude do corpo, tambem concorre muito para a perfeiçam do entendimento, porque fas os espiritos mais limpos, e maes puros, e por isso mais virozos para a percepçam das operaçoens intelectuaes; e que as funçoens da memoria melhor se executam com a abstinencia, do que com a demazia. Passou logo ao espiritual, e se se (sic) lembrou do Capitulo de S. Pedro, quando recomendou a seus irmãos, que se conservassem sobrios, e por isto vigilantes para que assim se podessem acautelar dos enganos do inimigo commum. Fratres sobrii estote, vigilite, e que por isso os Padres no Ermo do Egypto se contentavam com hum tenuissimo alimento, para com alegria se entregarem todos ao exame das couzas Divina. E por ultimo deo consigo na Moral, e na Politica dizendo que o ser sobrio produzia huma excellente utilidade, e o comprovou com o exemplo de Socrates, de quem disse Xonophonte que era de muito simples, e parco alimento, o que lhe foi tam util, que Eaercio refere na sua vida, que sendo Athenas varias vezes acometida de huma grande peste, em todas ficou sempre Socrates izento, o que se atribuio ao effeito da sua parcimonia, e sobriedade; e que o mesmo testemunhavam os exemplos de muitos Santos a quem oculto da abstinencia fez invenciveis a todas as tentaçoens dos sentidos; porque assim como fine Cerere, Baechofriget Venus tambem todos os movimentos irregulares, e dezordenados do animo por virtude da sobriedade entorpecem, e perdem quasi toda a sua força irregular: e disto procede que muitas naçoens que a practicam sam menos sogeitas a esta irregularidade de affectos, como sam os Chinas, alguns Africanos, e os de Italia, do que as outras que inteiramente se entregam aos excessos da Gula. E por ultimo cuido que concluio dizendo que o Vinho bebido com demazia, principalmente quando he generozo, parece ser muito prejudicial para as funçoens da alma, porque sendo de sua natureza muito vaporozo, confundindo o calor, e a humidade ofusca, e altera a luz dos espiritos. Eu que jà andava passeando sobre posse, e aborrecido de ouvir a sua missam, vendo que toda ella se encaminhava directamente a carregar os amigos, tomei hum pouco de fogo, e quiz cõ elle rebater esta sua fingida caridade, e sucedeo lembrarme por acazo (que àquellas horas tambem poderia ser por milagre) de algumas couzas que tinha lido, e me introduzi sem que elle o esperasse, na defensa daquelle chamado excesso. Convenho em ser verdade tudo quanto a esse respeito se diz; mas com licença de Vm. e de outros semelhantes declamadores, assento em que nam he o excesso de comer, e beber tam universalmente prejudicial ao espirito, e ao engenho dos homens, como muita gente se persuade. Porque ainda que a cautella em comer, e beber conduza muitas vezes para se aperfeiçoar o engenho, e sublime, que sam de hum bom comer, e muito melhor beber, e que huma, e outra intemperança socorre, e ajuda muito o seu entendimento. Nam se assustem com esta expressam, que muitos podem conceber por irregular, pois eu lhe dou a razam, que se funda em bons principios. Fazem se os homens vorazes, e comiloens pelo vigurozo, e forte calor do estomago, que elabora, e rezolve com brevidade admiravel tudo quanto nelle se introduz, pelo que fica logo o estomago dezejando o socorro de novo alimento, como se observa nos Alemaens, nos que trabalham, e nos rusticos: ainda que muitas vezes póde proceder tambem da nimia frialdade do mesmo estomago, que densando, e encrespando o seu inferior orificio, espreme, e extingue os humores, a que se segue o dezejo do alimento, e por consequencia a fome: o que muitas vezes sucede aos homens estudiozos, e doutos que pela vida se dentaria (sic) contrahem certas obstruçoens nas entranhas, pelas quaes se danifica o calor natural, e se augmenta o estranho, e excitando-se algumas evaporaçoens secas, e adustas que correm para o cerebro, despertam a fantezia, e ramificam as virtudes, ou forças intellectivas. He bem verdade que devo confessar para proceder de boa fé, que nacendo isto de huma cauza accidental, como he a obstruçam, o engenho de semelhantes homens, he ordinariamente desigual, disconcordante, vario, e pouco seguro, e por estas razoens nam he tam bom como o daquelles que tem hum corpo sam, e que nam he sogeito a esta cauza accidental. O mesmo que digo dos que comem muito, se póde affirmar tambem dos que bebem com demazia: porque nam deixa o vinho de conduzir muitas vezes para beneficio do engenho, e despertar o entendimento dos homens (diga cada hum o que quizer) tal vez que em razam de algumas partes subtiz, e seccas que nelle existem, e por esta cauza se observam com a demazia do Vinho muitas alteraçoens repetidas, e promptas nos espiritos, e no animo, as quaes muitas vezes sam excelentes. De Homero refere Horacio, que elle só basta para comprovar os louvores do Vinho: Laudibus arguitur vini vinosus Homerus. E em outro lugar diz que nunca o Poeta Ennio compunha melhor se naõ quando se achava a comettido com a enfermidade desta gotta. Ennius ipse pater nunquam nisi potus ad arma Prosiluit dicenda. Do Poeta Anacreonte cantou Ovidio. Sit quoque vino si Theia Musa Senis. Nem sómente nos Poetas se reconheceo esta utilidade, mas ainda em muitos Oradores antigos, e modernos se pode sem mentira affirmar o mesmo: Naõ falo, nem me quero lembrar dos modernos, porque pode haver ainda a memoria fresca de alguns, que sirvam mais de escandalo, que de exemplo, e o meu intento naõ he vituperar mas sim deffender, principalmente quando se trata de circunstancia que no conceito de muitos tem adquirido o grao de odioza, e basta comprovarmos isto com hum dos melhores, e mais elevados dos oradores antigos, que foi Catam menor, de quem o mesmo Horacio disse: Narratur prisci Catonis Saepe mero calusse virtus. E em outro lugar: Fecundi calices quem non fecere difertum. Se assim se conheceo nos Poetas, e Oradores, tambem nam deixou de ter o seu lugar nos Filosofos, e ou nos homens grandes. Aristippo hum dos maes doutos, e melhores politicos, nam frequentava a meza dos Principes se nam pelo vinho, e pela profuzam dos alimentos; o que deo motivo a chamarlhe Diogenes Cam Regio. Xenorates por absequiar a Dyonysio, dizem que enxugara huma pipa. Isto nam deixou de concorrer muito para augmentar o valor em Hercules, e Ulysses, como refere Celio. Nam foi menos practicada esta demazia por aquelle Alexandre a quem todo o mundo nam pode negar o renome de Grande; e por aquelle Emperador Romano chamado Tiberio, a quem inclinaçam para o vinho converteo o nome em Biberio. Nam podemos dizer que o vinho demaziado he nocivo, e prejudicial ao engenho, quando lermos em hũa Epistola de S. Jeronymo, que o mesmo Aristoteles universalmente aplaudido por grande, era hum dos maiores devotos de Bacho, e em Suidas, que era o mesmo Aristoteles demaziadamente apaxonado por Ceres. Finalmente nam se deve tanto censurar a demazia do vinho que nam tenha sua limitaçam, porque bem se pode hum homem embedar (falemos claro) sem que por isso seja bebado, o costume he que deve ser reprehendido, eo que fas vida de andar continuamente borracho. O mesmo Seneca nam reprova de quando em quando fazer a este respeito maes alguma largueza, porque escrevendo da tranquilidade da vida, dis que huma destas ocazioens sendo interpolada, n õ he absulutamente inutil, e a razam pòde ser a que dá Dioscorides, porque tomando-se depoes (sic) do vinho alguma porçam, principalmente de agoa, expurga os excrementos dos sentidos, e purificandoos ficam mais perfeitos, e capazes de melhor operaçam, e o seu conciliador commentando o primeiro problema da fessam 28 recomenda muito huma, ou duas destas occazioens em cada mes. E se podemos dar credito a Atheneo, acharemos que Mithridates dava em premio aos bebedores hum talento de prata, que na quelle tempo era huma somma consideravel, que tanto se estimava entam esta galantaria. Como se fazia tarde, com isto acabei a minha defensa em favor dos amigos, eo meo (sic) austero nam ficou muito contente com esta repulla, mas a mim me nam deo muito cuidado, qualquer que fosse o conceito que elle de mim ficou fazendo; dispedime delle, vime embora e bem vi que lá ficou resmungando, e sabe deos o que diria aos amigos com quem depoes conversou nesta materia. Faça cada hum o que lhe parecer melhor, que eu naõ quero morrer pelo povo, e só o credito dos meus amigos he que me obrigou a defender tanto o seu partido. Lisboa: Na Officina de Pedro Ferreira, Impressor da Augustissima Rainha Nossa Senhora.