Metatextuality
Enntre (sic) as figuras que
compoem a excellente arte da Rhetorica, a melhor, e a mais
agradavel pode ser a allegoria, porque com ella se explicam
sem muito enfado as coizas verdadeiras debaxo do veo de
alguma idea extravagante; e tambem porque sem o beneficio
desta figura fica muitas vezes dificultoza a mesma
explicaçam, e escuro o conhecimento do qu se quer persuadir.
Della para este effeito se serviram os melhores authores da
antiga latinidade, e ainda della se servem os
modernos; os melhores oradores de todos os seculos; com ella
se reprezentam mais medonhos os vicios, e se mostram mais
amaveis as virtudes: e finalmente debaxo desta figura se
mostraõ mais claramente, e com mais liberdade as couzas, e
as pessoas como na verdade sam. Como o estado do homem neste
mundo se naõ pode meudamente explicar com todas as
circunstancias inseparaveis da sua existencia, da sua
natureza, e da sua sociedade, determino ao menos dar esta
idea em forma allegorica que possa divertir o leitor, por
ser esta a menos enfadonha, e a mais certa: as reflexoens
sore o que disser, fiquem da sua parte, que naõ saõ
demaziadamente difficultozas, e lhe podem ser bastantemente
uteis.
A entrada do homem neste mundo, a que
commumente se chama Nascimento, naõ he outra coiza mais, que a
sahida de hum paiz muito desconhecido, para entrar depois em
outro igualmente ignorado, e de todo estranho. Nelle quando
chegamos naõ conhecemos pessoa alguma, e rezidimos sempre sem
que tambem nos conheçamos. Passados alguns annos depois da nossa
chegada a esta terra, ou por necessidade, ou muitas vezes por
temor, e desconfiança, nos associamos huns com os outros, mas
sempre sem conhecermos pessoa alguma, e quazi ordinariamente sem
hum amor reciproco. Isto naõ obstante com o
tempo nos familiarizamos com todos os homens, e no fim sahimos
deste mesmo paiz quazi sempre sem nos conhecermos. Depois desta
nossa entrada nesta terra, duas pessoas que tiveraõ a
imcumbencia de nos conduzir para ella, estaõ igualmente
encarregadas nos instruir. As pessoas se chamaõ Pays, e a
instrucçam que nos devem dar educaçaõ. Esta educaçaõ
propriamente falando, naõ he outra coiza mais que a inspiraçaõ
dos sentimentos, dos modos, e das qualidades destas duas
pessoas: e esta inspiraçaõ se faz com o socorro do amor proprio.
Todas differentes, e ao mesmo tempo commuas entre si: mas sempre
tem, diga cada hum o que quizer, o amor proprio por fundamento;
e este mesmo amor proprio toma diversas formas segundo os
homens, que o empregaõ. Com o tempo parece, que certos homens se
desfazem da sua educaçaõ; mas isto naõ he senaõ para agradar a
hum amor proprio prevertido. Nossos Pays tem, ou devem ter todo
o cuidado de nos dar huma idéa de hum ser, que elles conhecem
pouco, e que governa huma dilatada extençaõ de paiz, de que o
nosso faz tambem parte. A este grande paiz se chama Universo, e
este ser se chama DEOS; a este servem os ho- mens de
differentes modos, mas na verdade naõ ha mais que hum culto que
seja verdadeiro, e que lhe agrade ao qual se chama a Religiaõ
Catholica, e Apostolica Romana. Na Religiaõ em genero, cada hum
tem seus Deozes subalternos, e viziveis (porque o Soberano he
invisivel) e estes Deozes tem differentes nomes; e facilmente os
mudaõ segundo os projectos que delles se fazem. Depois de termos
habitado por alguns annos o mundo, se unem ao amor proprio
outras duas guias differentes; huma he a oppiniaõ, e a outra o
interesse, as quaes nunca nos deixaõ. Hum dos principaes Deozes
subalternos he a fortuna, fantasma enganadora, que com muita
brevidade aparece, e tambem dezaparece. Todos della falaõ, cada
hum a busca, e ninguem a vê: e por isso della naõ podemos dizer
coiza mais certa, senaõ que he huma verdadeira fantasma: e com
tudo esta mesma fantasma he cruel, e injusta; porque
incrivelmente nos atromenta, e muitas vezes nos tira os
sentimentos da Religiam, e da verdadeira virtude. Ella se
introduz em nòs pelo espirito, e deste se adianta muito mais
buscando outra rezidencia, de donde naõ sahe senaõ
violentamente, e com grande força, que he o coraçaõ. Agora
vejamos os diversos tormentos com que a fortuna
afflige os homens. Esta se conforma com o amor proprio, e nos
entrega a aparencia. A aparencia ordinariamente naõ persuade aos
homens outra couza mais senaõ que elles se podem servir della
com muito mais comodidade do que da virtdude. Illucina a nossa
imaginaçaõ, e e desconcerta com chimeras agradaveis, e ao mesmo
tempo horrorozas. Bem se podem estas chimeras pintar como
mininos com azas, e com dous rostos; mas falemos de hum modo
mais claro, e mais natural; estes objectos chimericos, saõ as
riquezas, e os cuidados. Tem azas, porque voaõ sem parar, e
deixaõ naquelles que as possuiraõ hũa impressaõ da sua
companhia, que se chama cobiça: Chamaõ-se mininos, e os cuidados
constituiçaõ sempre muito fraca, e muito ardente. Continuamente
se offerecem victimas á fortuna, sem que com taõ repetidas
oblaçoens se possa vencer o seu furor. Estas victimas saõ de
todas as idades, de todas as condiçoens, e de todas as especies:
como saõ os parentes, os amigos, os estranhos, os tolos, e os
mal procedidos: mas de todas estas victimas as dos amigos saõ as
que se sacrificaõ com mais frequencia, e com menos remorso, e
mais liberdade. Naõ ha razaõ para se chamar á
fortuna inconstante, porque ella nunca se muda, he sim
malicioza, e gosta muito de perseguir os seus devotos. A mais
cruel das suas perseguiçoens he aprezentar-lhes com hũa luz
falça, e em certa distancia objectos admiraveis, mas nenhum
delles solido: e os mais espertos, e mais cubiçozos saõ os
primeiros que se enganaõ. Por certas regras da optica, e da
prospectiva dispoem de tal sorte estes objectos, nos Templos
aonde concorem em grande numero os seus adoradores, que os rayos
da luz lhos reprezentaõ à vista como coisas de hum preço
inestimavel, correm para esta luz, e quando a ella chegaõ jà naõ
vem coiza alguma: e naõ achaõ senaõ huma nuvem grossa, e hum
espeço fumo. Tem tambem a fortuna ainda outros meios de
perseguir os homens, que todos tem a mesma efficacia; e o que
tem melhor effeito, he o de arruinar huns com os outros, e
algumas vezes a huns, e a outros tudo junto. He o mundo hum paiz
de exercicio; e as profissoens que nelle se exercitaõ saõ como
carreiras, as quaes tem diversos nomes, e differentes uzos. Ha
huns por donde se corre sem fim aparente, e parece que he só por
correr: mas quasi todas tem seu fim vizivel. As nossas guias nos
dirigem para alguma destas carreiras; por ellas
algumas vezes se chega ao meyo do caminho sem se poder acabar, e
se se chega ao fim, a fortuna vai dilatando, e estendendo o
mesmo fim a que parece tinham os chegado: e esta naõ he a menor,
e menos violenta das suas persiguiçoens. Encontram-se muitas
vezes outros que correm mais exercitados, mais vivos, e mais
subtis, e entaõ com armas se disputa o terreno, as quaes saõ as
subtilezas, e os enganos; e alguns dos espectadores neutros lhe
daõ hum nome equivoco chamando-lhe vivezas de espirito, e golpes
de habilidade; e o que perde he reputado por pouco esperro, e
delle se naõ fala mais. O que vence continúa para diante em
querer chegar ao fim, mas com que adversarios lhe naõ he ainda
percizo contender antes que de todo se faça senhor do campo? Vé
aparecer em alguma distancia dous inimigos destes bem
exercitados, e sendo ambos igualmente perigozos, e caprichozos,
ambos cuidaõ em lhe prejudicar. Hum delles o suscitaõ as nossas
mesmas guias o amor proprio, o interesse, e a oppiniam, e com
tudo naõ parece taõ terrivel, antes pelo contrario tem hum ar
rizonho, e honesto, parece fraco, e minino, mas he esperto, e
subtil, ainda que as suas armas sejaõ sômente hum medo delicado
de persuadir tudo quanto quer: he agil, e toma diversas fórmas,
e falta de huma para outra carreira com huma
ligeireza admiravel. Agarra sempre alguem, e o leva por caminhos
desviados, de dificultozos de que se achaõ cercadas as
carreiras, e entaõ he que o abondona, e dezempara, depois de o
ter enganado muito bem. Neste desvio, toda a consolaçaõ que fica
ao que corre he conhecer o seu contrario, de o reconhecer diante
de si debaxo de outra fórma, e que ordinariamente o naõ pòde
largar, que taõ agradavel o acha! Desta sorte he que o fim
aparece, e dezaparece alternativamente pelos agradaveis aspectos
do erro. Neste embaraço invencivel aparace o outro contrario
austero, e inexoravel, acomete o que corre, atira com elle fóra
do caminho, e fica sem esperenças de recuperar o mesmo sitio.
Este ultimo contrario he a morte, inimiga declarada de todos os
nossos projectos Ao sahir declarada desta carreira entaõ he que
nos achamos em outro paiz extraordinario, hum dia eterno o
illumina, e he tambem cercado de espessas trevas. Nelle vamos
certamente habitar ou nas trevas, ou na luz segundo o
procedimento que cada hum teve neste mundo, e he o ultimo fim do
homem, estando em seu arbitrio elleger qualquer destas
habitaçoens, sabendo que qualquer que seja sempre hade ser
eterna