O Anonymo. Repartido pelas semanas, para divertimento e utilidade do publico: Num.° 10
Permalink: https://gams.uni-graz.at/o:mws.7018
Livello 1
N.°. 10
Dos homens em geral.Livello 2
Na verdade que naõ ha couza que possa servir de
milhor instrucçaõ para a vida civil, e Politica, como he a liçaõ
dos caracteres dos homens, e as reflexoens, que sobre elles se
fazem, ou podem fazer; o verdadeiro fim a que se terminam os
primeiros he a introduzir hum quasi verdadeiro conhecimento das
pessoas, e servem de suavizar o serio das segundas, que pode ser
que enfaltiem se forem muito continuadas, e sem interrupçam. He
bem verdade que o caracter anima a Reflexaõ he propriamente a
explicaçam do Caracter, mas esta deve ser justa, pouco extensa, e preciza, e ao mesmo tempo clara, como
tambem o caracter vivo, puro, e agradvel, sem admittir couza
alguma que puxe para a bufoneria. Hum dos principaes caracteres
que devemos examinar para nossa instrucçam, he o do homem em
geral. He o homem huma das coizas bem equivocas, e atê o
prezente ninguem teve delle todo o conhecimento completo para
bem o diffinir. Tudo quanto delle se pode dizer sem engano he
que recebeo a razam, mas que ao mesmo tempo abuza della. Em
todos os seculos passados se trabalhou no seu conhecimento, e
nelle se naõ pode descobrir mais que hum amor
proprio, que martirizando a razam, lhe arma ao mesmo tempo as
mais crueis traiçoens: huma inclinaçaõ, ou propençaõ quasi
invencivel para se enganar na busca da verdade, e para enganar
os outros pela falta delles; hũa deligencia continuada do bem, e
hum caminhar perpetuamente para o mal. Os mais sabios Filozofos
tem trabalhado incansavelmente em descobrir os motivos que
obrigam o homem neste modo de obrar, e se alguns os tem
encontrado he somente por casualidade, e naõ por estudo; naõ
sendo os seus systemas proporcionados á extençam da corrupçam do
homem, nem podendo o seu espirito seguirlhes o coraçam em todos
os seus giros. Vivamos hum seculo, ou dez seculos, e
discorramos, se podermos, todo o Universo, veremos sempre os
mesmos homens, as mesmas paxoens, e os mesmos designios.
Caminhemos sempre, e nesta dilatada viagem parece que nos
adiantamos, e que no fim achamos o que queriamos, mas o
contrario he que ordinariamente succede. Vemos sim sempre
homens, mas ainda que passemos por hum numero infinito delles, a
penas (sic) podemos conhecer hum só que mereça dignamente este
nome. Os homens dependem, ou estaõ para melhor (...),
dependientes do seu humor; hoje os vemos (...) ptos, e capazes
de emprender as maiores acçoens: no outro dia os
achamos socegados, e negligentes. O calor do sangue, e a força
dos espiritos vitaes saõ os instrumentos que movem as suas
inclinaçoens, e delles procede a sua baxeza, ou a sua grandeza;
a sua sabedoria, ou a sua loucoura. Alguma sombra da Filozofia
nos dirá, que os nam desprezemos tanto, porque sendo cada hum de
nós membro do genero humano, se o homem he viciozo, cada hum o
pode tambem ser por consequencia; e temos conveniencia, e
interesse em sofrer os que tambem nos sofrem, naõ podendo
justamente dizer dos outros couza alguma, de que tambem nos naõ
acahamos inficionados; e parece muito mal queremos parecere
demaziadamente sabiso, com aquelles que entendem ter o mesmo
direito. Sejamos menos criticos, porque para hum homem chegar a
parecer honesto, e prudente naõ he necessario sensurar os
outros. Caminhamos para a virtude sem offender ninguem e todo
outro qualquer modo como que queiramos adiantarnos para ella he
indigno de hũ homē sabio. Esta reflexam bem poderia deter a pena
de muitos; mas a sua paixaõ interior os obriga a continuar no
seu exercicio; e seja ou por malignidade, seja por artificio, e
ou fiualmente seja por charidade, nenhum pinta para si, sem ao
mesmo tempo pintar tambem para os outros, e muitas vezes naõ
podem pintar sem despintar on insultar os mais. Naõ
peço para mim favor algum aos meus Leitores, porque sou tambem
homem, e reconheço que tenho os defeitos dos homens, e por isso
muitas vezes me tenho achado no que tenho dito, e acharei outras
tantas no que disser. Achase no homem a força, e a fraqueza, e
algumas vaidades na sabedoria que atiraõ com elle para a
loucura. Ama a verdade, segue-a, entende que a tem segura,
sogelhe, e cahe na mentira: e estando certo de se perder na sua
mesma curiozidade, quem se atreverá a prometterlhe hum
conhecimento certo. Necessita divertirse, està aflito quando se
acha ociozo; e quando està ocupado recebe hũa grande inquietaçaõ
de naõ poder adiantarse com mais presteza. O caminho por donde
anda está semeado de espinhos, e com tudo anda por elle com
confiança, porque lhe parece que està alcatifado de flores. A
isto se deve seguir descançar dos seus trabalhos: mas com tudo
vai sempre caminhando sem querer que ninguem o guie; dirige
sempre os passos para donde espera a sua felicidade, quando ella
de cada vez mais lhe foje; chega finalmente a huma escuridaõ sem
limites, e só nella he que tem fim os seus designios, a sua
grandeza, e o seu espirito. Desta sorte se cega o homem; e tudo
o conduz para o erro se naõ tiver em si grande cuidado. As
coizas ainda melhores, e mais excellentes se corrompem no seu espirito quando he mal disposto. A mesma
Religiaõ (se me he licito falar nella) lhe cauza entaõ males
perigozissimos. Se cre em Deos, naõ deixa com tudo de fazer hum
ser à sua vontade, elle o dilata, elle o mede, elle o diminue; e
o reprezenta forte, ou fraco, justo, ou injusto, e muitas vezes
tudo ao mesmo tempo. Elle o conserva, elle o deixa, segundo
imagina que o seu Deos lhe pode servir. E depois de se ter
apartado taõ socegadamente do verdadeiro Deos, quando chega a
hora de partir deste mundo, entende que basta fazer com elle as
pazes, adquirindo outra vez a sua amizade por alguns breves
momentos de verdadeira fogeiçaõ; tudo pode ser porque tem bom
fundamento na sua muita mizericordia, mas naõ deixa de ser
difficultozo; porque ordinariamente pelo mao habito se aumentaõ
indispoziçoens do coraçaõ. Regeita toda a divindade, e olha para
si como quem vai outra vez para o nada de que sahio no fim de
hma vida dilatada. Idea na verdade pessima, e em que certamente
se naõ pode encontrar utilidade alguma, vindo a valer depois
muito menos que qualquer outro animal, sem embargo de ter
reinado algum tempo sobre elles! Este idolo figurado, este nada
real saõ o que determinaõ quasi sempre as nossas acçoens;e
seguindo-se hũa vez este partido difficultozamente se deixa. Naõ
he precizo mais que ver hum homem no estado de
morrer, e tornalo a ver restituido à sua saude; na tristeza, e
na allegria, no perigo, ou fora delle. Se na adversidade parece
que abandona, e despreza a sua fantasma para adorar hum Deos
realmente verdadeiro he quasi sempre por acazo, e sem intento de
hũa constante perseverança, porque em mudando de condiçaõ, torna
facilmente ao passado, e se tambem por entaõ renuncia a idea do
nada, pode ser que seja por hum instinto muito semelhante ao dos
brutos. O estudo de si mesmo fundado sobre as verdades Divinas,
he que sómente nos pode conduzir ao conhecimento do homem, e
fortificarnos contra o erro. A razam humana he taõ sogeita ás
paixoens, que bem se podia considerar como hum Piloto
bastantemente perigozo, que naõ fica por fiador nem do
naufragio, nem dos perigos. Isto he o que em summa sepòde (sic)
saber do homem em comum, e até donde póde chegar o seu
conhecimento em geral.
Metatestualità
Mas disgraça he que se prezentemente as obras naõ carregam
para esta parte já se chamaõ insipidas, frias, e quasi
indignas de se lhe porem os olhos, porque se nam cuida no
louvavel fim da instrucçam, satisfazendo-se a maior parte da
gente com ter hum leve divertimento com alguma pueridade
jocoza, ou jocoseria, do que empregar alguma hora de liçam
no que pode servir para lhe polir o engenho, e fazelo mais
prompto para o raciocinio claro, e pausivel. Eu pasmo de ver
a indiscreta aplicaçaõ com que se buscam com gosto os papeis
que intitulando-se por critica, vem acabar em satira,
confundindo o fim, e a destinaçam de cada huma destas duas
coizas, e regulam por mà critica se naõ he huma rafinada
satyra. Deixam ordinariamente as materias, e buscam os
Authores; ordem os sojeitos, e quasi passam em claro pelas
obras, e finalmente se os papeis sam deste genero todos os
querem ler, mas se ha outros que contem materias mais
importantes para a reformaçaõ dos costumes depravados, e
para a doutrina da vida civil, nem para elles se olha, e se
reputam por coizas inuteis em que se emprega mal o tempo,
por que naõ provocam a soltarem-se quatro rizadas. Bem
conheço, que tambem e os caracteres, e as
reflexoens podem incluir em si algum leve ar de satyra, mas
como naõ he directa, nem encaminhada a sojeitos
determinados, nam devem os Leitores fazer applicaçoens
injuriozas, e quando algum as faça, naõ deve ser culpado, o
que escreve com hum animo livre, e indiferente, porque
sómente escreve para instruir, e naõ para offender. Protesto
desde logo, e ja desde o principio o tenho feito contra
estas aplicaçoens, porque sendo as reflexoens fundadas sobre
os defeitos dos homens em geral, naõ pode cauzar admiraçaõ
que se encontrem algumas que descubram o caracter de alguma
pessoa de nosso conhecimento. Bem sei que isto basta a
certos espiritos, para fazerem diversas aplicaçoens a seu
gosto, e segundo a parcialidade, ou inclinaçaõ do seu genio,
mas será injustiça grande, atribuir estas aplicaçoens
voluntarias ao que escreve sem objecto determinado a que
ellas se encaminhem.