O Anonymo. Repartido pelas semanas, para divertimento e utilidade do publico: Num.° 3.
Permalink: https://gams.uni-graz.at/o:mws.7011
Nivel 1
N.°.3
Da Sabedoria.
Nivel 2
Huma das couzas que mais provoca ao
rizo, e ao mesmo tempo inspira a reflexaõ, he ver, e observar
certos genios, que inchados pela sua vaidade, e pela força da
sua propria imaginaçaõ se querem sempre distinguir como sabios,
e ser escutados como oraculos, porque se persuadem que cada palavra que proferem he huma sentença, e que cada
discurso que fazem he huma quinta essencia do mais solido, e
mais dilatado raciocinio. Algumas vezes que me encontro com hum
destes espiritos, assim que aparece nunca o perco de vista, para
examinar com attensam, atè donde chegam os effeitos da sua
vaidosa prezumpçaõ e quasi sempre reparo em que comprimenta
poucos, fala só com alguns, e quasi sobre posse, e
immediatamente busca o melhor lugar, que de ordinario he entre
as Damas, que como mais credulas lhe formam hum vistozo
auditorio, e logo principia a espalhar entre aquella agradavel
tropa de parciaes, hum numero infinito de Decizoens, repartindo
como por favor o ouro das suas palavras. Hum destes genios bem
pode ser rico, bem instruido; e cheyo daquellas prendas que
adquiridas pelo estudo, e pelo exercicio fazem hum homem civil,
mas de ordinario se acham nelle tam arruinados estes principios
da boa educaçaõ pela vaidade que concebe da sua grande
sabedoria, que parecem mortos em hum corpo vivo, ou que sòmente
os contempla a imaginaçaõ como passados no immovel simulacro da
vaidade, e he pena que entendo acompanha hum destes, naõ ter
existido no tempo de Paganismo, porque cuido faria toda a boa
deligencia para que construindo-se algum Templo, fosse a sua
Estatua ainda que tenue, e breve, a quem se dedicassem os cultos
excessivos, e agigantados. Isto que repetidas vezes observo, me
faz lembrar dizer alguma couza sobre o argumento da sabedoria,
para dezenganar o vulgo ignorante, mostrando que naõ ha no mundo
quem inteiramente a pessua, e que he fatuidade reprehensivel
haver quem imagine, e se desvaneça que tem este dom completo.
Mas por donde darey principio a este asumpto da
sabedoria? Se quero principiar pela consideraçaõ do seu nome,
como ordinariamente fazem os Filosofos, acho que o toma (assim
Divina como he) das couzas sensiveis, a materiaes. E S. Bernardo
especificou que o gosto, e os sabores, saõ os primitivos
authores da sua denominaçaõ. Se quero deixar este principio, e
discorrer pelo da sua difiniçaõ, esta nos naõ pode instruir
melhor, porque della ainda se naõ tem concordado qual he o
verdadeiro Sabio que ella deve, ou pòde formar. A sabedoria,
E quem he o que póde ter esta perfeita luz, das couzas
divinas, e humanas, com o conhecimento das cauzas que as
produzem? E aonde se acharà hum espirito, que se possa com razaõ
desvanecer de poder penetrar até donde he precizo chegar, para
estabelecer sobre taes fundamentos esta pertendida ciencia?
Certamente só possue huma conhecida vaidade, e presumpçaõ quem
pertende mostrar que a chega a possuir. O Sabio dos Estoicos he
disto huma prova manifesta, como descreve. Horacio:
He isto huma fantasma taõ medonha, e taõ grotesca,
que a imaginaçaõ mais fina, e mais apurada a naõ pode deixar de
conceber como huma extravagancia qualificada; porque naõ possue
sómente as boas qualidades que acabo de referir nos sobreditos
termos latinos, mas ainda seria mais perfeito que todos os
Deozes que admittia a sua Religiaõ, exceptuando Jupiter, e
tambem o excederia nisto, em que Jupiter tinha por sua propria
natureza todas as ventagens com que se considerava, e elle as
tinha adquirido por sua propria industria, sem ser inferior em
couza alguma (excepto na immortalidade) a este Deos supremo do
gentilismo, a quem tinhaõ obrigaçaõ de reconhecer. Mas naõ foraõ
só os Estoicos, que cahiraõ neste prodigizio delirio, ainda que
elles foraõ sim os que os levaraõ mais lonje, que todos os
outros Filosofos Paganos, Porque O outro Diogenes da mesma familia, e a quem a sua pipa
fez tam celebre no mundo, quer que o seu sabio reconheça sómente
as couzas dignas de serem amadas, alem de o fazer de tal forte
impecavel, que segundo o seu conceito, ainda o mesmo sacrilegio
se lhe naõ deve imputar como crime. Suposto que esta invectiva
naõ deixa de entrar na classe das muitas irregulares que nos
deixou escriptas, e concorda muito com a outra de Theodoro
chamado o Atheo, que se acha escripta em Hesychio Illustrio, a
qual por ser alguma couza indecente julgo naõ ser conveniente
expola ao vulgo, e ao commum, em quem de ordinario falta o bom senso, ainda que a refere hum Author grave, e
de boa nota, só direy em summa, que aquelle Filosofo entendia
que a prohibiçaõ de muitas couzas dependia mais da oppiniaõ
popular, do que da sua propria natureza, e para os que endendem
latim refiro as suas proprias palavras: Os Mesmos
Estoicos foraõ tambem favorecidos por Epicuro no atributo que
davaõ ao seu sabio, de que naõ podia deixar de o ser, depois de
ter huma vez adquirido a sabedoria;
Mas ainda que este grande Filosofo diga, que a condiçaõ da nossa
humana naturezam, e o bem deste mundo requeiraõ que se ache
sempre hum homem taõ Etereoclito como o sabio que elle pertende,
posso contra elle argumentar por tudo o que se ve no mundo, e
por tudo o que experimentamos, e comprehendemos da
nossa fraca natureza, que ella nunca produzio, nem poderá
produzir em tempo algum nada que iguale as perfeiçoens de que
elle reveste este simulacro da virtude. Que couza ha no mundo
mais tenue, e mais fraca que o homem por qualquer principio que
se considere? E naõ se podendo duvidar de
que isto assim he, de que Elementos se pode dizer se compoem
aquelle sabio inalteravel, e que couza se pode conservar sempre
firme sobre o cubo em q̃ se achar hũa vez colocada? Certamente
descubro hum grande vacuo em todas as razões que pertendem
estabelecer o contrario, este fosse necessario insistir mais
contra ellas, ainda se pode achar muito mayor contradiçaõ. Mas
ainda q̃ cuido naõ ha muita necessidade de insistir nisto para o
convencimento da verdade, vamos adiantando mais o discurso ainda
q̃ naõ seja se naõ para encher a folha, e acabe adonde acabar.
Os mesmos Estoicos difiniraõ em infinitos lugares, o seu sabio
por hum homem de todas as horas. Estabeleceraõ muitas vezes por
axioma constante, que naõ havia quem fosse prudente, e avizado
em todas occasioens:
como disse, Plinio. Assim sem dificuldade
resulta que aquelle homem de todas as horas se naõ póde realizar
como pertendem, e que naõ póde ser concebido se naõ como huma
fantasma da imaginaçaõ, ou como huma cruz rozada de que quiz
abuzar a credalidade dos mais simples. E na verdade naõ ha mais
que a verdadeira Religiaõ que nos possa sufficientemente
informar no que consiste, ou deve consistir toda a
nossa sabedoria, e instruir, e ensinar até donde ella em fim se
deve encaminhar;
Esta sem duvida deve ser a razaõ porque o Ecclesiastes
profere livremente, que a verdadeira sabedoria nunca entra em
hũa alma perversa, nem naquelles a quem tem subjugado o vicio:
ou para melhor dizer foi o
unico a quem se concedeo por este modo, porque vemos do mesmo
lugar em que se acha escripto este milagre, que nem antes, nem
depois delle se vio no mundo outro semelhante, antes, E assim acabo, porque tambem já o papel esta no fim,
aplicando para aquelles espiritos cheyos de vaidade, e
prezumpçam que entendem se acham possuindo huma sabedoria
incontrastavel, com o documento que o mesmo sabio Rey Salomam
nos deixou escripto em seus proverbios, que nam basta conhecer a
sabedoria, porque isto naõ he mais que saber simplesmente a sua
primeira parte mas que devemos ao mesmo tempo fazer
toda a deligencia para esta se possuir com todas as suas
qualidades inseparaveis, sem desvanecimento, sem presumpçaõ:
O certo he que a prudencia he hum grande final
diagnostico para se conhecer a sabedoria, pois estas duas couzas
ordinariamente passam como synonymas, tanto no uzo commum de
falar, como em muitos lugares da sagrada Escriptura; e assim
devemos confessar que naõ he o mesmo ser rico, que sabio; antes
o contrario produzem as riquezas como diz hum proverbio Latino:
E que sem a prudencia nem ha
sabedoria, nem valem nada as riquezas; e para dezengano destos
ricos presumptuozos, e ignorantes, porque lhe falta a prudencia,
lhe offereço estes quatro versinhos, que bem expressam o
caracter que merecem no mundo civil:
Ejemplo
como diz o Orador Romano no
primeiro livro das obrigaçoens da vida, he a ciencia naõ
sómente das couzas Divinas, e humanas, mas tambem de todas
as cauzas de que ellas dependem; sejame licito referir pelas
suas proprias palavras a authoridade deste grande orador,
porque pode ser que estes papeis vaõ parar por a cazo as
maõs, de quem entende muito bem a lingoa em que elle fallou;
Cita/Lema
Sapientia estrerum
divinarum, humanarum, causarumque, quibus he (sic) res
continentur scientia.
Cita/Lema
Si dives qui sapiens est, Et sutor
bonus, solus formosus, e est Rex.
Ejemplo
Antistenes, fundador da feita cynica, sustenta como os
outros em Diogones Laercio, que todos os bens que os mais
homens possuem pertencem de direito ao que he sabio,
Cita/Lema
Sapientis esse quae caeterorum
sunt omnia.
Cita/Lema
Sapiens furto, adulterio, sacrilegioque deditus
erit, ex uso temporis, horum enim nihil natura turpe, si
tollas popularem de his oppinoem, quae ad continendum in
officio vulgus hominum recepta est.
Ejemplo
assim o refere o texto do que lhe escreveo a vida: Mas sem particulariar (sic) mais todas as qualidades
de hum sabio fantastico, nada me parece mais absurdo, que a
razaõ em que se fundaõ para sustentar que nisto naõ entra
nada de Chimerico, e que o Mundo nunca esteve se hum sabio
tal, como elles o reprezentaõ, porque o bem deste universo
quis que a idea que tenhaõ se realizavasse em alguma de suas
partes.
Cita/Lema
Eum qui simel (sic) fuerit
sapiens, in contrarium habitum transire non posse.
Ejemplo
Seneca assim o defendeo, como
Estoico, em diversos lugares, e especialmente no setimo, e
ultimo capitulo do livro da constancia do sabio, intitulado
por alguns o segundo livro da tranquilidade da alma.
Ejemplo
He a nossa vida,
segundo a reprezenta Democrito a Hypocrates, huma
enfermidade continuada, e complicada a respeito das duas
partes que cõstituem o nosso todo, por cauza da sua
estreita, e intima uniaõ.
Ejemplo
Cita/Lema
nemo omnibus horis sapit,
Ejemplo
porque Job
instruido muito bem nesta escola, ensina que sómente a
crença de Deos he que a communica apartando-nos do vicio.
Cita/Lema
Timor Domini ipsa est
sapientia, et recedere à malo intelligentia.
Ejemplo
David o confirma, chamando a esta
crença, a porta, ou o principio de toda a sabedoria:
Cita/Lema
initium sapientiae timor
Domini.
Ejemplo
E seu filho Salomaõ nos
representa em o seu Ecclesiastico homens velhos, coroados
com huma siencia unida à crença de Deos;
Cita/Lema
Corona senum multa peritia, gloria illorum
timor Dei.
Cita/Lema
in malevolam animam non
intrabit sapientia, nec habitabit in corpore subdito
peccatis.
Ejemplo
E na verdade, he a sabedoria hum
Dom do Ceo, com que gratifica, e premea aquelles a quem quer
encher de felicidade, mas verdadeiramente poucos a recebem,
como Salomaõ, dormindo;
Cita/Lema
nec post eum similis non surrexit.
Cita/Lema
principium sapientiae posside
sapientiam, in omni possessine tua acquire prudentiam.
Cita/Lema
Fortuna quem nimium fovet
stultum facit.
Cita/Lema
Sint tibi divite, sit larga, munda suppellex
Esse tamen vel sic bestia magna potes.
Nam quidquid fueris, nisi sit prudentia tecum,
Magna quidem dico bestiam semper eris.
Esse tamen vel sic bestia magna potes.
Nam quidquid fueris, nisi sit prudentia tecum,
Magna quidem dico bestiam semper eris.