O Anonymo. Repartido pelas semanas, para divertimento e utilidade do publico: Num. 4
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Level 1
N.°.4
Como se deve communicar a Sciencia.Level 2
General account
Achava-me hum dia destes muito bem
descançado em minha caza, quando me entrou pela porta dentro
hum dos amigos com quem costumo associarme para tomar o meu
passeyo, e entrou a persuadirme, que fosse com elle ouvir
hum Orador, que tinha chegado por grande fama; que era hum
homem doutissimo, e elegante, e que tinha conciliado para a
sua estimaçaõ hum conceito grande de seus ouvintes, pela
raridade da sua eloquencia, e pelo elevado de suas idéas, e
era taõ fundo tudo quanto dizia, que lograva presentemente
grandes creditos na Oratoria. Persuadiram-me as expressones
do meu Amigo, que naõ pude recuzar o convite, principalmente tendo eu pouco que fazer, porque naõ
sendo assim, tambem naõ fora, pois ordinariamente estes
Oradores elevados tocaõ no termo de impertinentes, e
enfadonhos; finalmente chegamos ao citio, entramos com algum
trabalho por estarem os lugares occupados, porque a fama
tinha arrastado muita gente, e em breve tempo dei com os
olhos no Orador. Dispos-se em publico com todas affectadas
ceremonias do estillo, medio com pauza demasiada o lugar, e
os assistentes, e deu principio à sua Oraçaõ: Declamou contra alguns
vicios; e elogiou algumas virtudes com hũa rethorica taõ
fexada, e taõ escura, q̃ cuido a mayor parte dos assistentes
ficou em jejum sem saber o que se reprehendia, e o que se
louvava. Vinha a exposiçam de alguns lugares taõ ordenada de
flores de elegancia, e tam acompanhada de figuras
Rhetoricas, que apenas entre ellas se podia distinguir o
verdadeiro, e genuino sentido para que se traziam aquelles
lugares: e nesta forma do principio atè o fim acabou o seu
discurso com hum aplauso universal dos assistentes, sahindo
quasi todos muito consolados, e satisfeitos do grande
engenho do Orador, da sua funda sabedora, da sua rara
eloquècia, e da elevada idèa de seus occultos pensamentos, e
entre estes barbaros elogiadores observei alguns de
qualidade tal, que ainda que o Orador fallasse em termos
mais preceptiveis, intelligentes, e claros elles o nam
entenderiam depois de estudarem sobre elles hum anno
inteiro; mas sómente porque o nam entenderam, e porque o eco
retumbante daquellas palavras, que nunca ouviram, fez nelles
hũa impressam estranha, deram logo a sua
approvaçam, e conceberam hum grande conceito no q̃ ouviram,
e quasi sempre isto basta no vulgo ignorante para
estabelecer hum bom credito, e hum indelevel conceito.
Metatextuality
mas logo soltou huns periodos
tam cheyos de expressoens retumbantes, e frazes tam
imperceptiveis, que custou muito a desfazer algumas para
atinar com o que queria dizer; palavras taõ novas, e tam
latinadas, que certamente era precizo hum novo
Vocabulario distinto do P. Bluteau, para se achar a sua
significaçaõ em Portuguez:
Dialogue
ora e certo he, que agora cheguei a ver verificada
parte daquella maxima estranha, e contraria com a razam que
muitas vezes se defendeo nas Escolas, e que se acha em hum
verso latino antigo que diz: porque entende que perde muito do que sabe, se o
disser em termos, que todos o entendam. Mas eu com licença
destes escuros, e sequazes de semelhante maxima, hei de
acomodarme muito mais com o que diz Persio: Pois naõ vi cousa mais barbara, a alhea,
da razaõ humana, que querer hum homem persurdir aos outros,
que sabe, e que he douto em qualquer genero de sciencia por
termos negativos, isto he pelo que naõ diz, pelo que naõ
explica, e pelo q̃ naõ escreve; porque esta expressam da
sciencia em ninguem teve atè o presente lugar, se naõ em S.
Paulo que foi douto, e sciente sem controversia, porque
assim o confessa todo o mundo, e pelos termos negativos com
que expressou o que vio nos ceos, he que deu a conhecer a
sua sciencia, confessando claramente que naõ sabir dizer o
que tinha visto, e o que nelles achou; pois em
tudo o mais he necessario, que a sciencia que se possue na
realidade, passe para o conhecimento dos mais pelos
porporcionados meyos da clareza, e da expressam inteligivel,
de modo, que aproveite aos que ouvem, e lem o que se diz, e
o que se escreve; e ainda que a todo o mundo possa ficar
parte, ou todo do que cada hum mostra que sabe, nem por isso
em si mesmo acharà diminuiçam alguma, por naõ ser a sciècia
indivisivel em quem a possue, mas sim communicativa para
quem a recebe. Para hum homem de bom natural naõ ha gosto
mais sensivel que o de poder satisfazer, ou aclarar o
espirito dos mais. A isto se pode ajuntar que este exercicio
he naturalmente seguido da sua justa recompensa, porque he
quasi impossivel que naõ produza alguma ventagem a quem o
pratica. A liçaõ dos livros, e as diversas ocurrencias da
vida nos enchem todos os dias de materia para cuidar, e
reflectir, e he muito natural dezejarmos que os nossos
pensamentos, e idéas sejaõ revestidas de palavras, sem as
quaes he difficultoso que se possa ter huma idéa clara, e
distinta. Tanto que as vemos assim explicadas, naõ ha couza
alguma que descubra melhor se ellas saõ justas, ou falsas,
que o effeito que ellas obraõ sobre o espirito dos mais.
A baxeza do
espirito que vejo nestas murmuraçoens, cauza como tudo menos
admiraçaõ, do que em outros seculos cauzaraõ algumas cartas
escritas sobre o mesmo.
Muitos
tem achado que saõ bastantemente solidas estas objeçoens, e
para justificarem os authores referidos, pertendem mostrar
que elles afectaraõ hum estilo escuro, para que só hum
pequeno numero de homens pudessem entender as suas obras.
A aplicaçaõ disto he clara para o intento, e naõ he
preciso mais. Seja o que for; esta Arte de
descrever, e falar de hum modo intelligivel, e claro he a
mais bem aceita, e seguida por quantidade de Authores
modernos. Depois de ter observado a inclinaçaõ universal que
os homens tem, a tratar em segredo, e a reputaçaõ que muitos
tem adquirida por benefiecio (sic) dos termos escuros, e de
frazes embrulhadas em que confundem as suas idèas,
resolveraõ, para se fazer menos preceptiveis, escreverem sem
alguma idèa. Esta Arte da forma que hoje se pratica, e que
muitos uzaõ, consiste em lançar acaso hum certo numero de
palavras que formaõ diversos periodos, e deixar ao leitor, e
ouvinte curioso o cuidado, e o trabalho de penetrar, e
descobrir o sentido verdadeiro que nelles se quer intimar.
Mas quanto a
mim, entendo que he muito melhor que hum homem se disponha a
communicar de tempo em tempo ao publico tudo quanto pode
chegar ao seu conhecimento, e que parecer digno da sua
estimaçaõ, comparando-se com huma alampada que se confome
dando toda a luz que pode para utilidade, e beneficio de
todos os que passaõ. Deste humor ha
ainda hoje muitos que reservaõ para si só o que sabem, e
despidos de toda a caridade, e animo generoso, deixaõ ficar
aos outros na ignorancia, e se alguma vez
querem communicar a sua ciencia he com huns termos taõ
escuros, e imperceptiveis, que depois de se terem cansado
muito, ficaõ os que ouvem, ou lem os seus discursos na mesma
ignorancia em que de antes estavaõ. Naõ entendo que isto
seja bom.
Citation/Motto
Si sciat hoc alter, scire tuum nihil est. Que vem dizer:
A sciencia de hum homem he nada, se a comunica a outro;
Citation/Motto
Scire tuum nihil est,
ni si te scire hoc sciat alter.
Perf. Satyr. I. vers. 17
Que he o mesmo, que se dissesse: A vossa sciencia he nada, se nam falais, e escreveis de modo que se conheça, que a tendes.Metatextuality
Eu certamente tenho gosto
excessivo de que no curso destes papeis se tem tratado
diversos assumptos, e explicado algumas maximas
pertencentes à vida civil, que a mayor parte dos
leitores ignorantes, ou que o pequeno numero dos que
sobre ellas tinhaõ alguma idéa, olhavaõ para ellas como
tantos segredos, e consideraçoens occultas que guardavaõ
somente para seu uzo, sem que as quizessem communicar ao
publico. O que confirma este pensamento he ver, e ouvir
como muitos me reprehendem, e murmuraõ de ter com estes
papeis abandonado, e entregue a sciencia à discriçaõ, e
liberdade do vulgo, e de a ter
prestituido ao publico como alguns dizem. Outros me
acuzaõ de ter exposto os segredos da prudencia, e da
politica aos olhos de todo o mundo.
Example
Ainda
se conserva huma carta que Alexandre o Grande escreveo a
seu Mestre Aristoteles, sobre ter este Filosofo
publicado alguma de suas obras: nesta Epistola se queixa
Alexandre de que elle fez conhecer a todo o mundo tudo
quanto lhe ensinou em particular, e concluio:
Citation/Motto
Que elle estimava muito
mais exceder a todos os homens em sabedoria, que em
poder.
Example
A Condeça de Aranda Luiza de
Padilha, Senhora certamente de huma grande conprehençaõ,
e sabedoria, se degostou muito de que o famoso Gracian
publicasse o seu tratado do Discreto, por nelle mostrar
aos olhos de todos, as maximas que se deviaõ reservar
somente para o conhecimento dos grandes.
Example
Persio Poeta Satyrico
affectou ser escuro por outro motivo differente; mas
como tudo hum Author Inglez; naõ podendo disfarçar o
odio que conservava a hum estillo semelhante escuro, e
imperceptivel, escreveo a hum de seus amigos nestes
termos:
Citation/Motto
Vos me dizeis que
naõ podeis resolver se Persio he hum bom, ou máo
Poeta, porque o naõ entendeis: por isso mesmo eu
affirmo que Persio naõ he bom Poeta.
Example
Os Egypcios que
empregavaõ Jeroglificos para expressarem diversas
cousas, representavaõ hum homem que limitava a sua
ciencia, e fexava os seus descobrimentos uteis em si
proprio, pela figura de huma lanterna surda, ou como
dizemos de furta fogo, fexada por todas as partes, que
ainda que tem por dentro muita luz, naõ dá claridade
alguma aos que estaõ juntos a ella.
General account
Acabarei
esta reflexaõ com a historia do Tumulo em que estava
sepultado O Cruz- Rozada. Todos entendo que sabem que
este chimico fundou a seita dos Irmãos da Cruz- Rozada,
e que seus discipulos pertendem sempre fazer novos
descobrimentos, os quaes naõ devem communicar a pessoa
alguma fora da sua sociedade, na forma de seus
inviolaveis estatutos. Hum certo homem que
teve occasiaõ de cavar mais profundamente no lugar em
que este Filosofo estava enterrado, achou huma pequena
porta cercada por ambas as partes de hum muro. A sua
curiosidade natural, e a esperança de que naquelle lugar
estivesse escondido algum Thesouro, o obrigaraõ a
penetrar a porta. Admirado de ver huma luz repentina,
descobrio logo huma excellente abobeda, no fundo da qual
estava a figura de hum homem armado sentado junto a hum
bufete, tendo inclinada a cabeça sobre o braço esquerdo,
e na maõ direita tinha hum bastaõ groço, e curto, e huma
lampada ardendo diante delle. Tanto que este curioso
entrou na caza, se levantou a estatua, e ficou em pé; ao
dar outro passo, levantou a maõ em que tinha o bastaõ, e
ao terceiro movimento do curioso, descarregou hum
terrivel golpe com que fez a lampada em mil pedaços, de
sorte que tudo ficou às escuras. Com a noticia desta
aventura, o povo daquella vesinhança foi logo ao Tumulo
com lanternas, e tochas acezas, e se descobrio que a
estatua, que era de bronze, era huma peça feita com
machina de relogio, que o pavimento da caza era formado
de chapas movediças, e que tinha por baixo diversos
registros, que de sorte que quando se caminhava sobre o
pavimento, produziaõ todos os effeitos antecedentes.
Este chimico conforme o que dizem os seus Discipulos,
tinha feito esta invençaõ, para dar a conhecer ao mundo,
que elle tinha achado o segredo das lampadas
inextinguiveis dos antigos, e para impedir que pessoa
alguma se aproveitasse delle.