Nam posso deixar de me admirar quando vejo a grande fadiga com que os homens se applicam a adquirir, e accumular aquillo a que chamam bens da Fortuna, para o que os conduz ou a vaidade, ou a ambiçam. Se este dezejo fosse produzido de huma idéa justa de quererem armar-se de meyos proporcionados
Isto a que commumente se chama fazer hum homem a sua fortuna, isto he augmentar muitos os seus bens, e o seu cabedal, he huma fraze tam excellente, e que explica huma coiza tam boa, que tem hum uzo quasi universal, porque he commua em todas as lingoas; e ainda as naçoens mais barbaras a reconhecem: reina nas Cortes, nas Cidades, nas Villas, e em quasi todos os lugares; atè chega a penetrar os Claustros, e ainda os lugares mais Sagrados, os Dezertos, e as Solidoens naõ estaõ livres do conhecimento de semelhante fraze. Mas para se pôr em uzo pratico nam basta qualquer espirito por mais vivo que seja, nem toda a boa deligencia com que elle se pertende empregar, mas he necessario sobre tudo que seja acompanhado de huma grande fortuna em si mesmo, para conseguir os dezejados bens porque tanto suspira: sendo certo que nam pertence nam ao bom
Destes successos se encontram a cada passo, e ordinariamente olhamos para os homens nesta transformaçam de estado, como o fazemos para aquellas Arvores, que depois de grandes se transplatam para os jardins, aonde cauzam admiraçam a todos que as vem postas naquelles excellentes lugares em que as naõ viram crecer, e que naõ conhecem nem os seus principios, nem os seus progressos, de sorte que ordinariamente os bens da fortuna trazem sempre huma origem desconhecida, e por isso nam he impropria a admiraçam.
Que conceito formariam do prezente seculo, os antigos se voltassem a este mundo, vendo alguns del-
Tendo estes bens semelhantes principios, quaes seram os seus effeitos? Quasi todos se enganam no modo com que olham para esta chamada felicidade de os possuir; primeiramente póde ser que os filhos fossem mais amados de seus paiz, e estes devessem muito mayor amor aos mesmos filhos se nam mediasse aquelle titulo de herdeiros, porque he tam má a condiçam do homem que faz muitas vezes prevalecer o dezejo de possuir hum grande cabedal, e huns avultados bens da fortuna, esquecendo-se das obrigaçoens da natureza: e nam deixa de ser triste, e mizeravel a condiçam humana, quando para ter semelhante fortuna, ou aposse de seus bens se faz dependente da agonia, e do ultimo respiro dos que nos sam mais proximos no sangue; pelo que estes mesmos bens nos pódem procurar de alguma sorte muitos inimigos da nossa existencia, o que nam succederia se naõ tivessemos tanta grandeza, porque naõ havendo muito que esperar, se nam fomentaria pela ambiçam o dezejo de se ver extincto o obstaculo que impede, e embaraça a brevidade com que se dezejam possuir os bens da fortuna; pelo que entendo neste sentido que he felicidade
Todos os homens pelos differentes lugares, que se ocupaõ, pelos titulos, e pelas successoens olham huns para os outros como se fossem reciprocamente herdeiros de seus bens, de officios, e de lugares, e por este interesse cultivarám por todo o tempo de sua vida hum occulto dezejo da morte alhea; e assim vem os homens a enganarse quando cuidam, que a mayor felicidade em qualquer condiçaõ he possuir o muito que se ha de perder por sua morte, estando cercado de tantos successores presumptivos que anciosamente a estam a todas as horas esperando.
Mas àlem desta péssima qualidade, que anda anexa à posse destes bens, ainda ha outra, que quasi sempre he delles inseparavel. Entre todas as affiçoens que combatem o homem, naõ ha nenhuma que tenha quasi huma perpetua duraçaõ como he a que procede da perda dos bens; pois o mesmo tempo que adoça, e suaviza todas as mais, augmenta esta, porque em todos os instantes do curso da vida se conhece, e renova a falta dos bens que se perderaõ; do que bem se pòde inferir que he loucura grande dezejar com efficacia a posse de huma coiza, que quando se perde cõmunica ao homem huma afliçaõ que a todas as horas mortifica, e que naõ he o tempo capaz a serenar.
O trabalho, e o arrependimento saõ outras duas qualidades, que trazem aos homens estes dezejados
He para admirar o estranho modo comque (sic) se adquirem os bens da fortuna, e a facilidade comque se perdem.
Depois de tudo isto, nam sei que haja occasiaõ mais proxima para a pobreza, como sam as grandes riquezas; porque entendendo os homens que estas nam podem acabar vam consumindo com maõ larga, e despendendo a seu arbitrio sem ser ouvida a razaõ, e quando menos o cuidam se acham sem coua alguma cahidos na pobreza mais miseravel, o que naõ experimentariaõ se naõ tivessem tam copiosa abundancia de bens, e eu conheci certa pessoa, que antes de ter huma tença de 300U reis annuaes passava muito em,
Ultimamente nenhuma outra couza se converva por mais tempo do que huma mediocre fortuna: assim como naõ ha couza de que se veja mais depressa o fim do que huma fortuna grande, e excessiva; pelo que bem posso seguramente persuadir aos meus Leitores, que os mayores bens da fortuna que com ancia se devem procurar, sam os que podem comunicar huma fortuna mediana, com os quaes se passe com decencia a vida; porque estes trazem comsigo muito menos perigos da inveja, e decadencia; pois isto quasi basta para hum homem se julgar rico, gastando menos do que tem de renda, porque excedendo a despeza à receita em pouco tempo se achará pobre.
Se todos fizerem huma boa reflexam sobre as qualidades anexas aos bens da fortuna, entendo que hamde diminuir o grande, e excessivo amor comque os buscam, e satifazendo-se de gozar os sufficientes
Medio tutissimus ibis.
Na Officina de Pedro Ferreira, Impressor da Augustissima Rainha nossa Senhora