O Anonymo. Repartido pelas semanas, para divertimento e utilidade do publico: Num.° 11

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Level 1

N.°. 11

Discripçam Allegorica do Estado; do Homem no mundo.

Level 2

Metatextuality

Enntre (sic) as figuras que compoem a excellente arte da Rhetorica, a melhor, e a mais agradavel pode ser a allegoria, porque com ella se explicam sem muito enfado as coizas verdadeiras debaxo do veo de alguma idea extravagante; e tambem porque sem o beneficio desta figura fica muitas vezes dificultoza a mesma explicaçam, e escuro o conhecimento do qu se quer persuadir. Della para este effeito se serviram os melhores authores da antiga latinidade, e ainda della se servem os modernos; os melhores oradores de todos os seculos; com ella se reprezentam mais medonhos os vicios, e se mostram mais amaveis as virtudes: e finalmente debaxo desta figura se mostraõ mais claramente, e com mais liberdade as couzas, e as pessoas como na verdade sam. Como o estado do homem neste mundo se naõ pode meudamente explicar com todas as circunstancias inseparaveis da sua existencia, da sua natureza, e da sua sociedade, determino ao menos dar esta idea em forma allegorica que possa divertir o leitor, por ser esta a menos enfadonha, e a mais certa: as reflexoens sore o que disser, fiquem da sua parte, que naõ saõ demaziadamente difficultozas, e lhe podem ser bastantemente uteis.
A entrada do homem neste mundo, a que commumente se chama Nascimento, naõ he outra coiza mais, que a sahida de hum paiz muito desconhecido, para entrar depois em outro igualmente ignorado, e de todo estranho. Nelle quando chegamos naõ conhecemos pessoa alguma, e rezidimos sempre sem que tambem nos conheçamos. Passados alguns annos depois da nossa chegada a esta terra, ou por necessidade, ou muitas vezes por temor, e desconfiança, nos associamos huns com os outros, mas sempre sem conhecermos pessoa alguma, e quazi ordinariamente sem hum amor reciproco. Isto naõ obstante com o tempo nos familiarizamos com todos os homens, e no fim sahimos deste mesmo paiz quazi sempre sem nos conhecermos. Depois desta nossa entrada nesta terra, duas pessoas que tiveraõ a imcumbencia de nos conduzir para ella, estaõ igualmente encarregadas nos instruir. As pessoas se chamaõ Pays, e a instrucçam que nos devem dar educaçaõ. Esta educaçaõ propriamente falando, naõ he outra coiza mais que a inspiraçaõ dos sentimentos, dos modos, e das qualidades destas duas pessoas: e esta inspiraçaõ se faz com o socorro do amor proprio. Todas differentes, e ao mesmo tempo commuas entre si: mas sempre tem, diga cada hum o que quizer, o amor proprio por fundamento; e este mesmo amor proprio toma diversas formas segundo os homens, que o empregaõ. Com o tempo parece, que certos homens se desfazem da sua educaçaõ; mas isto naõ he senaõ para agradar a hum amor proprio prevertido. Nossos Pays tem, ou devem ter todo o cuidado de nos dar huma idéa de hum ser, que elles conhecem pouco, e que governa huma dilatada extençaõ de paiz, de que o nosso faz tambem parte. A este grande paiz se chama Universo, e este ser se chama DEOS; a este servem os ho- mens de differentes modos, mas na verdade naõ ha mais que hum culto que seja verdadeiro, e que lhe agrade ao qual se chama a Religiaõ Catholica, e Apostolica Romana. Na Religiaõ em genero, cada hum tem seus Deozes subalternos, e viziveis (porque o Soberano he invisivel) e estes Deozes tem differentes nomes; e facilmente os mudaõ segundo os projectos que delles se fazem. Depois de termos habitado por alguns annos o mundo, se unem ao amor proprio outras duas guias differentes; huma he a oppiniaõ, e a outra o interesse, as quaes nunca nos deixaõ. Hum dos principaes Deozes subalternos he a fortuna, fantasma enganadora, que com muita brevidade aparece, e tambem dezaparece. Todos della falaõ, cada hum a busca, e ninguem a vê: e por isso della naõ podemos dizer coiza mais certa, senaõ que he huma verdadeira fantasma: e com tudo esta mesma fantasma he cruel, e injusta; porque incrivelmente nos atromenta, e muitas vezes nos tira os sentimentos da Religiam, e da verdadeira virtude. Ella se introduz em nòs pelo espirito, e deste se adianta muito mais buscando outra rezidencia, de donde naõ sahe senaõ violentamente, e com grande força, que he o coraçaõ. Agora vejamos os diversos tormentos com que a fortuna afflige os homens. Esta se conforma com o amor proprio, e nos entrega a aparencia. A aparencia ordinariamente naõ persuade aos homens outra couza mais senaõ que elles se podem servir della com muito mais comodidade do que da virtdude. Illucina a nossa imaginaçaõ, e e desconcerta com chimeras agradaveis, e ao mesmo tempo horrorozas. Bem se podem estas chimeras pintar como mininos com azas, e com dous rostos; mas falemos de hum modo mais claro, e mais natural; estes objectos chimericos, saõ as riquezas, e os cuidados. Tem azas, porque voaõ sem parar, e deixaõ naquelles que as possuiraõ hũa impressaõ da sua companhia, que se chama cobiça: Chamaõ-se mininos, e os cuidados constituiçaõ sempre muito fraca, e muito ardente. Continuamente se offerecem victimas á fortuna, sem que com taõ repetidas oblaçoens se possa vencer o seu furor. Estas victimas saõ de todas as idades, de todas as condiçoens, e de todas as especies: como saõ os parentes, os amigos, os estranhos, os tolos, e os mal procedidos: mas de todas estas victimas as dos amigos saõ as que se sacrificaõ com mais frequencia, e com menos remorso, e mais liberdade. Naõ ha razaõ para se chamar á fortuna inconstante, porque ella nunca se muda, he sim malicioza, e gosta muito de perseguir os seus devotos. A mais cruel das suas perseguiçoens he aprezentar-lhes com hũa luz falça, e em certa distancia objectos admiraveis, mas nenhum delles solido: e os mais espertos, e mais cubiçozos saõ os primeiros que se enganaõ. Por certas regras da optica, e da prospectiva dispoem de tal sorte estes objectos, nos Templos aonde concorem em grande numero os seus adoradores, que os rayos da luz lhos reprezentaõ à vista como coisas de hum preço inestimavel, correm para esta luz, e quando a ella chegaõ jà naõ vem coiza alguma: e naõ achaõ senaõ huma nuvem grossa, e hum espeço fumo. Tem tambem a fortuna ainda outros meios de perseguir os homens, que todos tem a mesma efficacia; e o que tem melhor effeito, he o de arruinar huns com os outros, e algumas vezes a huns, e a outros tudo junto. He o mundo hum paiz de exercicio; e as profissoens que nelle se exercitaõ saõ como carreiras, as quaes tem diversos nomes, e differentes uzos. Ha huns por donde se corre sem fim aparente, e parece que he só por correr: mas quasi todas tem seu fim vizivel. As nossas guias nos dirigem para alguma destas carreiras; por ellas algumas vezes se chega ao meyo do caminho sem se poder acabar, e se se chega ao fim, a fortuna vai dilatando, e estendendo o mesmo fim a que parece tinham os chegado: e esta naõ he a menor, e menos violenta das suas persiguiçoens. Encontram-se muitas vezes outros que correm mais exercitados, mais vivos, e mais subtis, e entaõ com armas se disputa o terreno, as quaes saõ as subtilezas, e os enganos; e alguns dos espectadores neutros lhe daõ hum nome equivoco chamando-lhe vivezas de espirito, e golpes de habilidade; e o que perde he reputado por pouco esperro, e delle se naõ fala mais. O que vence continúa para diante em querer chegar ao fim, mas com que adversarios lhe naõ he ainda percizo contender antes que de todo se faça senhor do campo? Vé aparecer em alguma distancia dous inimigos destes bem exercitados, e sendo ambos igualmente perigozos, e caprichozos, ambos cuidaõ em lhe prejudicar. Hum delles o suscitaõ as nossas mesmas guias o amor proprio, o interesse, e a oppiniam, e com tudo naõ parece taõ terrivel, antes pelo contrario tem hum ar rizonho, e honesto, parece fraco, e minino, mas he esperto, e subtil, ainda que as suas armas sejaõ sômente hum medo delicado de persuadir tudo quanto quer: he agil, e toma diversas fórmas, e falta de huma para outra carreira com huma ligeireza admiravel. Agarra sempre alguem, e o leva por caminhos desviados, de dificultozos de que se achaõ cercadas as carreiras, e entaõ he que o abondona, e dezempara, depois de o ter enganado muito bem. Neste desvio, toda a consolaçaõ que fica ao que corre he conhecer o seu contrario, de o reconhecer diante de si debaxo de outra fórma, e que ordinariamente o naõ pòde largar, que taõ agradavel o acha! Desta sorte he que o fim aparece, e dezaparece alternativamente pelos agradaveis aspectos do erro. Neste embaraço invencivel aparace o outro contrario austero, e inexoravel, acomete o que corre, atira com elle fóra do caminho, e fica sem esperenças de recuperar o mesmo sitio. Este ultimo contrario he a morte, inimiga declarada de todos os nossos projectos Ao sahir declarada desta carreira entaõ he que nos achamos em outro paiz extraordinario, hum dia eterno o illumina, e he tambem cercado de espessas trevas. Nelle vamos certamente habitar ou nas trevas, ou na luz segundo o procedimento que cada hum teve neste mundo, e he o ultimo fim do homem, estando em seu arbitrio elleger qualquer destas habitaçoens, sabendo que qualquer que seja sempre hade ser eterna