O Anonymo. Repartido pelas semanas, para divertimento e utilidade do publico: Num.° 10

Permalink: https://gams.uni-graz.at/o:mws.7018

Niveau 1

N.°. 10

Dos homens em geral.

Niveau 2

Na verdade que naõ ha couza que possa servir de milhor instrucçaõ para a vida civil, e Politica, como he a liçaõ dos caracteres dos homens, e as reflexoens, que sobre elles se fazem, ou podem fazer; o verdadeiro fim a que se terminam os primeiros he a introduzir hum quasi verdadeiro conhecimento das pessoas, e servem de suavizar o serio das segundas, que pode ser que enfaltiem se forem muito continuadas, e sem interrupçam. He bem verdade que o caracter anima a Reflexaõ he propriamente a explicaçam do Caracter, mas esta deve ser justa, pouco extensa, e preciza, e ao mesmo tempo clara, como tambem o caracter vivo, puro, e agradvel, sem admittir couza alguma que puxe para a bufoneria.

Metatextualité

Mas disgraça he que se prezentemente as obras naõ carregam para esta parte já se chamaõ insipidas, frias, e quasi indignas de se lhe porem os olhos, porque se nam cuida no louvavel fim da instrucçam, satisfazendo-se a maior parte da gente com ter hum leve divertimento com alguma pueridade jocoza, ou jocoseria, do que empregar alguma hora de liçam no que pode servir para lhe polir o engenho, e fazelo mais prompto para o raciocinio claro, e pausivel. Eu pasmo de ver a indiscreta aplicaçaõ com que se buscam com gosto os papeis que intitulando-se por critica, vem acabar em satira, confundindo o fim, e a destinaçam de cada huma destas duas coizas, e regulam por mà critica se naõ he huma rafinada satyra. Deixam ordinariamente as materias, e buscam os Authores; ordem os sojeitos, e quasi passam em claro pelas obras, e finalmente se os papeis sam deste genero todos os querem ler, mas se ha outros que contem materias mais importantes para a reformaçaõ dos costumes depravados, e para a doutrina da vida civil, nem para elles se olha, e se reputam por coizas inuteis em que se emprega mal o tempo, por que naõ provocam a soltarem-se quatro rizadas. Bem conheço, que tambem e os caracteres, e as reflexoens podem incluir em si algum leve ar de satyra, mas como naõ he directa, nem encaminhada a sojeitos determinados, nam devem os Leitores fazer applicaçoens injuriozas, e quando algum as faça, naõ deve ser culpado, o que escreve com hum animo livre, e indiferente, porque sómente escreve para instruir, e naõ para offender. Protesto desde logo, e ja desde o principio o tenho feito contra estas aplicaçoens, porque sendo as reflexoens fundadas sobre os defeitos dos homens em geral, naõ pode cauzar admiraçaõ que se encontrem algumas que descubram o caracter de alguma pessoa de nosso conhecimento. Bem sei que isto basta a certos espiritos, para fazerem diversas aplicaçoens a seu gosto, e segundo a parcialidade, ou inclinaçaõ do seu genio, mas será injustiça grande, atribuir estas aplicaçoens voluntarias ao que escreve sem objecto determinado a que ellas se encaminhem.
Hum dos principaes caracteres que devemos examinar para nossa instrucçam, he o do homem em geral. He o homem huma das coizas bem equivocas, e atê o prezente ninguem teve delle todo o conhecimento completo para bem o diffinir. Tudo quanto delle se pode dizer sem engano he que recebeo a razam, mas que ao mesmo tempo abuza della. Em todos os seculos passados se trabalhou no seu conhecimento, e nelle se naõ pode descobrir mais que hum amor proprio, que martirizando a razam, lhe arma ao mesmo tempo as mais crueis traiçoens: huma inclinaçaõ, ou propençaõ quasi invencivel para se enganar na busca da verdade, e para enganar os outros pela falta delles; hũa deligencia continuada do bem, e hum caminhar perpetuamente para o mal. Os mais sabios Filozofos tem trabalhado incansavelmente em descobrir os motivos que obrigam o homem neste modo de obrar, e se alguns os tem encontrado he somente por casualidade, e naõ por estudo; naõ sendo os seus systemas proporcionados á extençam da corrupçam do homem, nem podendo o seu espirito seguirlhes o coraçam em todos os seus giros. Vivamos hum seculo, ou dez seculos, e discorramos, se podermos, todo o Universo, veremos sempre os mesmos homens, as mesmas paxoens, e os mesmos designios. Caminhemos sempre, e nesta dilatada viagem parece que nos adiantamos, e que no fim achamos o que queriamos, mas o contrario he que ordinariamente succede. Vemos sim sempre homens, mas ainda que passemos por hum numero infinito delles, a penas (sic) podemos conhecer hum só que mereça dignamente este nome. Os homens dependem, ou estaõ para melhor (...), dependientes do seu humor; hoje os vemos (...) ptos, e capazes de emprender as maiores acçoens: no outro dia os achamos socegados, e negligentes. O calor do sangue, e a força dos espiritos vitaes saõ os instrumentos que movem as suas inclinaçoens, e delles procede a sua baxeza, ou a sua grandeza; a sua sabedoria, ou a sua loucoura. Alguma sombra da Filozofia nos dirá, que os nam desprezemos tanto, porque sendo cada hum de nós membro do genero humano, se o homem he viciozo, cada hum o pode tambem ser por consequencia; e temos conveniencia, e interesse em sofrer os que tambem nos sofrem, naõ podendo justamente dizer dos outros couza alguma, de que tambem nos naõ acahamos inficionados; e parece muito mal queremos parecere demaziadamente sabiso, com aquelles que entendem ter o mesmo direito. Sejamos menos criticos, porque para hum homem chegar a parecer honesto, e prudente naõ he necessario sensurar os outros. Caminhamos para a virtude sem offender ninguem e todo outro qualquer modo como que queiramos adiantarnos para ella he indigno de hũ homē sabio. Esta reflexam bem poderia deter a pena de muitos; mas a sua paixaõ interior os obriga a continuar no seu exercicio; e seja ou por malignidade, seja por artificio, e ou fiualmente seja por charidade, nenhum pinta para si, sem ao mesmo tempo pintar tambem para os outros, e muitas vezes naõ podem pintar sem despintar on insultar os mais. Naõ peço para mim favor algum aos meus Leitores, porque sou tambem homem, e reconheço que tenho os defeitos dos homens, e por isso muitas vezes me tenho achado no que tenho dito, e acharei outras tantas no que disser. Achase no homem a força, e a fraqueza, e algumas vaidades na sabedoria que atiraõ com elle para a loucura. Ama a verdade, segue-a, entende que a tem segura, sogelhe, e cahe na mentira: e estando certo de se perder na sua mesma curiozidade, quem se atreverá a prometterlhe hum conhecimento certo. Necessita divertirse, està aflito quando se acha ociozo; e quando està ocupado recebe hũa grande inquietaçaõ de naõ poder adiantarse com mais presteza. O caminho por donde anda está semeado de espinhos, e com tudo anda por elle com confiança, porque lhe parece que està alcatifado de flores. A isto se deve seguir descançar dos seus trabalhos: mas com tudo vai sempre caminhando sem querer que ninguem o guie; dirige sempre os passos para donde espera a sua felicidade, quando ella de cada vez mais lhe foje; chega finalmente a huma escuridaõ sem limites, e só nella he que tem fim os seus designios, a sua grandeza, e o seu espirito. Desta sorte se cega o homem; e tudo o conduz para o erro se naõ tiver em si grande cuidado. As coizas ainda melhores, e mais excellentes se corrompem no seu espirito quando he mal disposto. A mesma Religiaõ (se me he licito falar nella) lhe cauza entaõ males perigozissimos. Se cre em Deos, naõ deixa com tudo de fazer hum ser à sua vontade, elle o dilata, elle o mede, elle o diminue; e o reprezenta forte, ou fraco, justo, ou injusto, e muitas vezes tudo ao mesmo tempo. Elle o conserva, elle o deixa, segundo imagina que o seu Deos lhe pode servir. E depois de se ter apartado taõ socegadamente do verdadeiro Deos, quando chega a hora de partir deste mundo, entende que basta fazer com elle as pazes, adquirindo outra vez a sua amizade por alguns breves momentos de verdadeira fogeiçaõ; tudo pode ser porque tem bom fundamento na sua muita mizericordia, mas naõ deixa de ser difficultozo; porque ordinariamente pelo mao habito se aumentaõ indispoziçoens do coraçaõ. Regeita toda a divindade, e olha para si como quem vai outra vez para o nada de que sahio no fim de hma vida dilatada. Idea na verdade pessima, e em que certamente se naõ pode encontrar utilidade alguma, vindo a valer depois muito menos que qualquer outro animal, sem embargo de ter reinado algum tempo sobre elles! Este idolo figurado, este nada real saõ o que determinaõ quasi sempre as nossas acçoens;e seguindo-se hũa vez este partido difficultozamente se deixa. Naõ he precizo mais que ver hum homem no estado de morrer, e tornalo a ver restituido à sua saude; na tristeza, e na allegria, no perigo, ou fora delle. Se na adversidade parece que abandona, e despreza a sua fantasma para adorar hum Deos realmente verdadeiro he quasi sempre por acazo, e sem intento de hũa constante perseverança, porque em mudando de condiçaõ, torna facilmente ao passado, e se tambem por entaõ renuncia a idea do nada, pode ser que seja por hum instinto muito semelhante ao dos brutos. O estudo de si mesmo fundado sobre as verdades Divinas, he que sómente nos pode conduzir ao conhecimento do homem, e fortificarnos contra o erro. A razam humana he taõ sogeita ás paixoens, que bem se podia considerar como hum Piloto bastantemente perigozo, que naõ fica por fiador nem do naufragio, nem dos perigos. Isto he o que em summa sepòde (sic) saber do homem em comum, e até donde póde chegar o seu conhecimento em geral.