O Anonymo. Repartido pelas semanas, para divertimento e utilidade do publico: Num.° 9
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Niveau 1
N.°. 9
Dos Habitos virtuozos.Niveau 2
Para dizer alguma couza sobre o muito
que os homens moços se afastam das regras de huma boa filosofia
moral, que naõ falava senaõ
das virtudes, E na verdade estes discursos virtuozos
sam muito maos fiadores da vida daquellas pessoas, a quem a
perpetua inconstancia dos costumes faz com que se naõ pareçam
com sigo mesmo,
ou para uzar da expressam de Cicero, quando
exagera esta materia, Mas
seja o que for; sem emprender alargarme neste vasto
campo da dissimulaçam aparente debaxo do respeitavel veo da
virtude, tocarei somente no ponto precizo dos bons habitos
virtuozos que os homens devem precizamente adquirir, e
conservar. Os
termos de redondo, e quadrado sam na verdade oppostos, mas tem
algumas significaçoens figuradas, que concordam muito bem entre
si. A figura cubica, ou quadrada que os Pithagoricos estimaram
tanto, E assim o homem virtuozo verdadeiro, por
este principio tem com ella muita semelhança, nam sendo sogeito
a variaçoens, e parecendo sempre, e em todos os lugares o mesmo
de qualquer lado que o vejamos. Alguns disseram, que nesta
igualdade se parecia muito com os estofos de duas faces, que saõ
taõ agradaveis por dentro como por fóra, e que saõ bons em todo
o sentido. A outra figura redonda, ou esferica tem hum
semelhante privilegio de estar sempre com hum mesmo aspecto, e
porque se reconhece a mais capaz, e a mais perfeita de todas; e
depois de a terem atribuido ao mundo, naõ duvidaram aplicala
tambem a Deos, sendo a razaõ disto, porque a copia deve ser
semelhante ao seu original.
Este he o modo
com que se chegou a escrever dos homens de virtude, dizendo que
eraõ rodondos, ou quadrados para significar o mesmo, ainda que
com termos differentes. He verdade que hom homem de virtude, naõ
deve ter outro motivo mais forte, e mais poderozo, que o
satisfazer a sua obrigaçaõ, nem dezejar outro melhor theatro que
o da sua propria conciencia. Esta virtude que elle considera
como filha do Ceo, tras consigo, o mesmo que os numeros da
Arithmetica, o seu valor, e a sua efficacia, conforme o
pensamento do sofista Eunapio, dandolhe satifaçoens que preferem
a todas as recompensas da terra; e que assim como naõ ha coiza
alguma que naõ possa emprender, tambem nada lhe pode resistir,
quando naõ tem outro cuidado mais que em seguir as suas
determinaçoens. Ao menos por isto he que a Sybilla anima Eneas.
E quando tem sucedido alguma coiza que parece contraria a
tam boas maximas, os antigos fizeram culpado o Ceo, e os Gregos
foram neste particular bastantemente impios, querendo injuriar a
Deos da prosperidade dos vicizios. A bondade
destes pensamentos nam embaraçàm com tudo a que muitos queiram
sustentar, que esta virtude assim tam excellente como he, naõ
serve ordinariamente aos que fazem profissam de a seguir, maes
que de hum ornamento vam, e mentirozo; que na verdade he huma
bella Dama, mas que recompensa ordinario muito mal que a
cortejam; e que ainda que ella seja a inimiga
declarada do vicio, tem de commum com elle, naõ obrar se nam por
interesse. Isto naõ he inteiramente repugnante ao axioma das
Escolas, que entre os contrarios se dà quasi semptre a mesma
razam. E se do vicio se disse ou com os termos
de Sacustio, a continuada experiencia nos mostra que a
mayor parte destes bons homens, nada obram sem fazerem reflexam
sobre a utilidade, de forte que achando todo o seu lucro, e
conveniencia na hipocresia, naõ deve cauzar admiraçam se os
vemos exercitar acções virtuozas, pela propria maxima dos mãos.
O Poeta Latino o diz maes asperamente, e quasi sem excepçam.
A prova disto
seria muito facil se alguem a dezejase ouvir; mas basta que
digamos com Euripides que o Ceo sempre dá alguns signaes para
diferençar hum hipocrita de hum verdadeiro virtuozo, assim como
os temos bem claros, e certos para se reconhecer, e distinguir a
moeda falsa da verdadeira. Nam póde cauzar grande admiraçam
vendo hum destes homens quasi sempre retirado, e occulto,
fugindo da companhia dos maes, sabendo-se pela doutrina de
Aristoteles que a propriedade de hum viciozo he naõ poder viver
em companhia, e que ainda com o mesmo cuidado dezeja fugir da
sua propria, porque a mesma consciencia lha faz odioza, e
insoportavel a si mesmo: e com tudo he muito difcultozo adquirir
outra diferente habituaçaõ. Todos nacemos com huma inclinaçam
tam natural para o mal, que he quasi impossivel o perdela. A
virtude naõ entra em nós para a combater se nam pela porta dos
bons habitos difficultozos a contrahir, e logo ao principio topa
tudo cheyo de contrarios como se entrasse em huma
terra inimiga; e he necessario confessarmos para nossa confuzam,
que a nossa natureza he nisto muito chegada aos brutos, que
pomos no lugar mais inferior, querendo muitas vezes a nossa
vaidade disputar com os Anjos igualaçoens. Esta proximidade
brutal he a que deo ao vicio o nome de peccado, porque
fazendonos este desgraçado vicio obrar contra a razaõ, que he só
a que nos distingue dos outros animaes, nos faz perder a nossa
verdadeira forma, para tomarmos a dos brutos. Ora que meyo
haverá para rezistir às propensoens semelhantes áquellas que
fazem decer para o centro todos os corpos pezados, e graves? Bem
podemos lançar mil vezes huma pedra ao ar, e nenhuma hade subir
por si mesmo, nem tambem deixara o seu habito, ou propensam
natural para decer. E certamente naõ ha maes que a Divina graça
que possa remedear esta mizeravel dezordem, comunicando-nos os
habitos virtuozos, que como as perolas, se foram dos puros
orvalhos do Ceo: mas sam tam raros estes habitos da virtude, que
seria huma especie de inhumanidade enchernos de colora contra os
que naõ os recebem; em quanto ouver homens no mundo naõ deixarà
de haver vicios, A comodemonos a esta Profecia, e
soframos com paciencia os defeitos dos outros, para que tambem
desculpem os nossos. Ainda que o nosso modo ordinario de falar
confunde muitas vezes as palavras intemperança, e incontinencia
como se fossem synoymas, a Escola Peripatetica fez dellas huma
grande distinçaõ; e a razam
que dá he, porque o vicio do primeiro tem o seu fundamento na
natureza, e o do outro naõ procede se naõ de hum mào costume
Segundo a sua oppiniam he impossivel vencer a natureza, e o
mesmo seguio Horatio. E esta depravaçam ainda que
por algum tempo se emmende, com facilidade torna a parecer no
seu mesmo estado, porque para elle está continuamente
propendendo a natureza, Nam he assim dos maos habitos que formam a incontinencia;
porque estes com facilidade se perdem com a introduçam de outros
contrarios (sem falar do que póde a razam) Huma paxam na
Moral abate outra, assim como ordinariamente vemos na Politica,
que huma facçam oprime a que lhe he opposta; e da mesma forte
que se observa nos peixes,
e assim com muita
utilidade se reprime muitas vezes hum costume viciozo, por utro
menos perigozo, que mais facilmente póde deixar, e extinguir.
Huns e outros tem o mesmo perigo sendo màos, e isto me faz
lembrar hũa consideraçan do Poeta Eschiles para mostrar o poder
do costume, que hum Gladiador acostumado aos golpes se naõ
queixa de huma ferida q̃ recebe, obrigando esta a gritar, e
assustar os espectadores. E assim os homens se endurecem no
vicio, como os Gladiadores às feridas por cauza dos màos
habitos, pelo que devemos procurar com ancia, e efficacia
adquirir aquelles que os podem destruir. Nam intento dar para
isto alguns preceitos, porque já ha infinitos, e estimo como
Cada hum se lizongea, e poucos se examinaõ como he necessario
para se aporveitarem; Com tanto q̃ agrademos ao Publico, a
quem em tudo quanto he possivel queremos fazer a vontade; nam
emporta que cuidemos no interior das nossa obrigaçoens, e
ficamos muito satisfeitos quando nos parece que temos posto em
bom estado o nosso exterior. Certamente que o mundo nos pode
viver em grande obrigaçam, vendo que o amamos mais do q̃ a nòs
mesmos, e que preferimos a sua aprovaçam ao nosso proprio juizo,
como tambem aos mais occultos movimentos da nossa conciencia.
Sobre isto lamentamos a condiçam dos ultimos seculos; mas eu
affirmo que he acuzar os innocentes, o imputar às estaçoen a
forte das nossas espirituaes indispoziçoens. Confesso que os
espiritos sam muitas vezes sogeitos, como os corpos, a
enfermidades chronicas, e que ha tempos em que certos vicios sam
mais cõmus doque em outros: isto com tudo nam impede, geralmente
falando, a que depravaçam dos nossos costumes, ou a sua rectidam
nam caminhe sempre com o seu passo ordinario. Sei muito bem que Seneca que foi
quem deixou isto escrito, entendeo que a virtude caminhava com hum passo muito differente do que o vicio, quando
acrescenta,
que he o mesmo q̃ se dicesse que
todo o tempo produz Clodios, e naõ Catoens, atribuindo a
Clodio os vicios, e a Catam as virtudes. Mas eu naõ
quero buscar senaõ a elle mesmo para o convencer do erro que
nisto ha. Nam ha idade algũa em que se
naõ viva como no seculo de oiro, com tanto que os homens se
regulem sobre os principios da ley natural santamente explicados
pela de Deos. Porque ainda que este oiro, fisicamente falando,
he muito melhor, e adquire melhor quilate, quando està mais
distante da mina que o produzio; nam he assim a rectidam moral
que he precizo sempre pelo contrario puxala para a sua origem,
que he o direito natural, e Divino, para se evitar a sua
depravaçam.
O certo he que o bom exemplo tem muita força para animar
as virtudes, e desterrar os vicios, por ser quazi natural tambem
o dezejo da imitaçam, principalmente do que vemos practicar ás
pessoas mais distintas, e mais recomendaveis.
Exemple
me assusta o receyo de que
me dem o sobre nome de Aretalogo que adquirio hum certo
Estoico chamado Crispino Plotio,
Exemple
no mesmo sentido que
o Emperador Pertinax se chamou tambem Chrestologo, por dizer
muitas coizas boas sem obrar nenhuma, como refere Julio
Capitolino.
Exemple
como expressa
figurativamente o grande Seneca, ha hum grande numero de outras que nunca
tiram a mascara da probidade, para lhe servir de capa a
todas as suas dezordens.
Citation/Devise
quique alternis Vatinii, alternis Catones
sunt,
Citation/Devise
Qui Curios simulant, et Bacanalia
vivunt.
Citation/Devise
qui ut
Gallonius vivunt, loquuntur ut frugi ille Piso.
Exemple
O que Aristoteles dis
do homem virtuozo, que he como huma figura cubica, nam he de tam dificultoza acomodaçam eomo se entende,
segundo o modo ordinario de falar, quando se diz hum homem
redondo, para se expressar hum homem de bem.
Citation/Devise
quadratus sine vituperatione,
Exemple
e que Marciano Cappella
atribue particularmente a Mercurio, tem a propriedade
de ser igual em todos os lados, e detodas a menos sogeita a
ser abalada.
Citation/Devise
numerus quadratus Cyllenio, deputatur, quod
quadratus Deus solus habeatur,
Exemple
De
sorte que com Diogenes naõ foy o unico que sustentou, que
hum homem de bem, e virtuozo era a verdadeira imagem dos
Deozes de seu tempo, diziaõ cõmumente que e hum semelhante
homem era aplicandolhe neste sentido a figura
redonda, e circular.
Citation/Devise
Totus teres, atque
rotundus,
Exemple
Isto me faz lembrar
de huma expressaõ de que uza Marco Antonino do duodecimo
livro da sua vida, dizendo que os que poem a sua alma em hum
perfeito prato, adquirem a figura do globo de Empedocles, e
pessuem por esta redondez a perfeiçaõ que faz o mundo taõ
consideravel para com o seu Creador.
Citation/Devise
Invia virtuti nulla est via
Citation/Devise
Dei dedecus est improbos esse fortunatos.
Citation/Devise
Nullum fine auctoramento malum est,
Citation/Devise
Nemo omnium gratuito
malus est,
Citation/Devise
Nec facile invenies multis
inmilibus unum,
Virtutem praetium qui putet esse sui.
Ipsi decor recti, facti si praemia desint,
Non movet, et gratis paenitet esse bonum.
Virtutem praetium qui putet esse sui.
Ipsi decor recti, facti si praemia desint,
Non movet, et gratis paenitet esse bonum.
Citation/Devise
pecatum a pecore,
Citation/Devise
Vitia erunt
donec homines.
Exemple
e Aristoteles
diz formalmente, que o intemperante he muito peor, e de maes
difcultoza correcçam do que o incontinente;
Citation/Devise
Naturam expellas furca, tamen
usque recurret.
Citation/Devise
Tolle
periculum,
Tam vaga prosiliet frenis Natura remotis.
Tam vaga prosiliet frenis Natura remotis.
Citation/Devise
affectum in ordine cogit.
Exemple
porque
ha alguns como he o Reverto das Indias Occidentaes, que sam
costumados a comer os outros:
Exemple
o Gram Cam da Tartaria tem
leoens, como tambem o Mogol Tigres de que se servem para a
cassa dos outros animaes ferozes;
Exemple
Seneca o pensamento do
Philisofo Demetrio, dizendo que assim como he muito melhor,
e mais util na luta saber só algũas venidas proprias para
lançar em terra o seu competidor com tanto que se practiquem
bem, e naõ aprender hum grande numero dellas;
que quazi sempre sam inuteis; assim tambem he muito melhor
na Moral, observar o uzo ordinario de poucas maximas
proprias, e conducentes para conduzirmos perfeitamente a
nossa vida, que fazermos huma grande proviza dellas, que
muitaes vezes confundindo-se naõ tem serventia alguma.
Exemple
Sobre tudo devo recomendar o
conselho de Pytagoras, que naõ que sô de dia he que nos
devemos ver aos espelho, e naõ de noute com luz emprestada,
porque esta luz nunca, nos descobre bastantemente a nòs
mesmos, nem com tanta fidelidade como a luz do dia.
Citation/Devise
hoc aequè
omnium est, ut vitia sua exscusare malint, quàm excutere,
quàm effugere.
Citation/Devise
Hominum sunt ista, non temporum;
nulla aetas vacavit a culpa Nunquam apertius quam coram
Catone peccatum est.
Exemple
Citation/Devise
Omne tempus Clodios, non omne
Catones feret,
Exemple
A sua virtude, e de
alguns outros do seu tempo naõ foi menos consideravel no
Imperio de Nero, do q̃ a de Catam tinha sido no Imperio do
primeiro dos Cesares.
Exemple
A este intento me
lembra q̃ Marco Antonino compara o homem virtuozo com huma
fonte, que no seu nacimento lança sempre as agoas claras, e
puras, ainda que depois se vejam sogeitas a perderem a sua
pureza, e excellencia quando se afastam da sua origem.
Exemple
E por ultima conclusam devemos
ter sempre prezente a tradiçam de que fala Clemente
Alexandrino como vinda do Apostolo S. Mathias, que a falta,
ou defeito de hum homem se deve imputar às melhores pessoas
da sua vizinhança, porque estas sem duvida lhe nam deram
todo o bom exemplo para o desviar de as cometer:
Citation/Devise
Si Electi vicinus peccaverit,
peccavit Electus, nam si ita gessisset, ut jubet verbum,
seu ratio, ejus vitam ita esset reveritus vicinus, ut
non peccasset.