Metatextualité
Confesso na verdade que nam sei
como me heide haver com os meus Leitores, porque tenho
ouvido falar com tanta variedade nestes papeis, que dezejara
a certar (sic) com o gosto de todos; idéa certamente nam so
difficultoza, mas a meu ver impossivel; e jà me tivera
deixado disto a nam considerar a verdade de huma maxima, que
quando hum homem faz alguma coiza destas, que nam concorda
com o gosto de huns, lá dará com o gosto de outros que
aprovem, e quando alguns o aplaudirem sempre
devo considerar tambem, para me nam desvanecer, que naõ hade
faltar quem o dezaprove, e como isto he tam antigo no mundo,
vou andando cem este trabalho porque por cauza de huns, nam
percam os outros; diga mal quem o quizer dizer, pois se com
justiça emtendem (sic) que o podem fazer do Anonymo, do que
elle diz certamente o nam podem dizer, pelo cuidado que poem
em instruir, e nam escandalizar. Suposto o humor
malencolico, que hoje mais do ordinario, me predomina, hade
ser o papel mais serio, e mais proveitozo que he o principal
intento que levo; e hade ser sobre os obstaculos que
embaraçam o homem a fazer bem, os quaes se devem vencer, e
desterrar para se pôr no estado de ser util no mundo; e isto
nam he de tam pouca utilidade como alguns com menos
advertencia se podem persuadir.
Ainda que o humor
interessado, e pouco communicativo esteja muito em moda no
mundo, e seja o que maes frequentemente se encontre, com tudo
nem por isto devemos concluir, que este he o temperamento em
geral de todos os homens; porque ainda ha muitos que estimam, e
dezejam fazer bem, acudir aos outros quãdo podem, e em quem a
felicidade (para me explicar assim) he mais reflexa, que
directa, ou immediata. E ainda que estas almas nobres, e
generozas sejam em muito pequeno numero, e tam elevadas sobre a
multidam das outras, que se póde entender que sam de huma outra
especie, com tudo a sua natureza he a mesma conduzida pelos
mesmos principios, e dotada das mesmas qualidades effenciaes,
cultivadas sim, e rafinadas por meyo de huma boa educaçam. A
agoa he o mesmo corpo fluido assim de Inverno, como de Veram,
ainda que se veja convertida em gelo pelo rigor do frio, ou que
corra, e regue os campos. A propriedade natural do
coraçam humano he amar, e estimar o dilatarse muito; e dezejar
hum grande bem a toda a vasta extensaõ da creaçam; e se ha
alguns, que nam sam poucos, que recolhidos em si mesmo naõ amam
mais que ao seu proprio individuo, sem parecer, que se
interessam para como os da sua mesma especie, he precizo crer,
que o seu bom natural está gelado, e detido para as suas
operaçoens pela força predominante de alguma qualidade
contraria. Pelo que procurarey mostrar alguns dos principaes
obstaculos que se oppoem a esta generoza inclinaçam das nossas
almas, para ver se com isto descobrimos algum meyo de remedear
este defeito, e de a restabelecer no livre exercicio de suas
funçoens naturaes. A primeira, e principal cauza he o infeliz
temperamento do corpo.
Hétéroportrait
Os Pagãos,
que naõ conheciam o verdadeiro principio de donde procedia o
mal moral, o attribuiam principalmente à obliquidade da
materia, que suppondo-a eterna, e independente, algumas de
suas propriedades naõ podiam admittir mudança, nem ainda por
todo o poder de Deos, porque quando veyo a formar o mundo se
vio precizado a tomala no estado em que a achou. E nam
sómente esta idéa, mas tambem a maior parte das que elles
tinham, era huma mistura de verdade, e de erro.
Adiantarse a dizer que a materia he eterna; que depois da sua
primeira uniam com huma alma, lhe perverteo as suas
inclinaçoens; que a maligna influencia, que tem sobre o
espirito, nam poderia ser emmendada pelo mesmo Deos, tudo nisto
sam erros grandes, aos quaes huma verdade que nam he menos
evidente pòde ter dado algum lugar naquellas idéas; quero dizer,
que as faculdades, e as dispoziçoens da alma dependem, em grande
parte, do temperamento do corpo. Assim podem dizer que ha loucos
naturaes, como tambem embusteiros, e homens de
pessima qualidade, que sam taes sómente pelo effeito da maquina,
que naceram com huma certa qualidade de espirito que os conduz
para a avareza; que a materia de q̃ se compoem he tam tenaz como
agrude, e que huma especie de cadeado lhe fexa as mãos, e o
coraçam de sorte, que nunca as querem abrir a nam ser para
apanhar aquillo que lhe nam dam; ou o que os outros possuem. He
precizo confessarmos, que he esta huma infeliz constituiçam, mas
he acompanhada de huma ventagem sobre os que se lhe nam dá de se
absterem de fazerem ao proximo alguns bons officios: isto he,
que em lugar, que as pessoas de hum natural generozo tomam de
ordinario o instincto para a virtude, por cauza da dificultade
que ha de distinguir quando hum, o outro destes principios he
que os governa; os de hum caracter opposto a este podem
certificarse mais do motivo que os anima em cada huma de suas
acçoens. Se os ultimos nam sabem conceder hum beneficio com este
ar livre, e este dezembaraço de animo que sam necessarios para
lhe darem alguma graça nos olhos do publico, em desconto disto,
o merecimento real da acçam recebe alguma coiza de especial pela
dificuldade que tem em vencer a sua propria inclinaçam. A força
da sua virtude parece que nisto, excede o pezo da natureza, e
sempre que tomam a rezoluçam de consentir no que devem,
sacrificam à conciencia a sua inclinaçam, que está sempre
prompta a dominar os que a seguem. Póde ser que a inteira cura
desta má qualidade nam seja menos imposivel, do que sam as de
outras enfermidàdes hereditatias (sic). Com tudo se ha algum
meyo para ter effeito, pareceme que he o de huma continuada
serie de genorizidades, por meyo das quaes se póde chegar a este
fim, e que por ellas se póde formar huma habituaçam moral, que
póde servir de contrapezar a força do mecanismo;
mas nam se deve perder occaziaõ alguma, debaxo de qualquer
pretexto que seja, de fazer algum bem ao proximo; porque a menor
interrupçam póde dar lugar à natureza, que sem cessar se acha
sempre no auge de tomar seu antigo costume, e de recuperar em
poucos dias todo o terreno que tiver perdido em muito annos. Ha
pelo menos esta differença entre a habituaçam do espirito, e as
do corpo, que as ultimas, para este se fortificar, necessitam de
nam serem contrastadas, em lugar que as outras se devem sempre
renovar a todas as horas, porque de outra sorte se enfraquecem,
e por ultimo se extinguem. Isto mesmo nos insinua a razam porque
he necessario mais tempo em geral para se arreigarem os bons
habitos, e muito menos para os maos; pois os viciozos (por
exemplo a bebedisse) deixam sinaes muito profundos no corpo, o
que nam sucede a respeito dos primeiros, que devem ser
conservados pelo mesmo meyo com que se adquiriraõ, isto he por
força da industria, da rezoluçam, e e vigilancia. Outro
obstaculo que impede os effeitos da generozidade he o amor do
mundo, que procede de huma falsa idéa que delle se tem,
considerando-se que para se fazer a vida feliz se devem acumular
quantidade de bens temporaes, saõ estes de huma tal natureza que
a sua divizam os diminue, e quanto mais pessuidores ha menos
cabe a cada hum em particular. Disto se segue que os homens
olhaõ huns para os outros de mà vontade, e que todos aplicados
ao mesmo intento, imaginaõ que hum, os naõ pode alcançar sem ser
com prejuizo do outro. Daqui procede o grande numero de
concorrentes para os bens, e para as honras; que o bom successo
de hum, faz a mizeria do outro, e que todos semelhantes aos
rios, que correm todos para o mar, a penas entre elles se acha
ainda a mais commua (sic) caridade. Naõ he
porque elles naturalmente sejaõ dispostos a se injuriar, ou a
querer-se mal; mas he natural a cada homem querer-se preferir
aos outros, e cuidar em primeiro lugar no seu proprio interesse.
Se isto em que os homens querem que consista a sua felicidade
fosse como a luz, hum bem universal, e sufficiente para todos,
ou haja dez mil que delle gozem, ou hum só, veriamos que a sua
benevolencia, e a sua generozidade seriam tambem universaes. Mas
a disgraça he o que os homens concordam em escolher objectos que
inevitavelmente os introduzem em hũas continuadas disputas: por
isso devemos aprender nos homens sabios a estimar as couzas pelo
que valem. Nam se devem dezejar os bens deste mundo mais dos que
sam necessarios para passar a vida com alguma suavidade. Devemos
olhar para tudo, o que he fora disto, nam somente como inutil,
mas como hum embaraço verdadeiro. Nam se deve pôr a nossa
felicidade nas couzas que nam podemos conseguir sem dellas
privarmos os outros, e por este caminho faelos nossos inimigos;
e que huma vez conseguidas hamde de dar mais embaraço para as
guardar, que gosto para as possuir. A virtude he hum bem muito
mais nobre, e se augmenta com a comunicaçaõ, e tem tam pouca
semelhança com as riquezas mundanas, que quanto mais espalhada
se acha em differentes maõs, mais o cabedal de cada hum se
augmenta. He huma luz que serve para alumiar os homens, e
quantos mais ha que gozem della, muito mais resplandesse naõ
sómente em geral, mas tambem em particular. Finalmente deve
haver huma lembrança de que se as riquezas sam hum meyo de
procurar os gostos, o mayor que ellas podem dar, he o fazer bem,
e servirem de utilidade para os mais. Alem disto a actividade
dos orgaõs dos nossos sentidos tem huns limites muito apertados, e os nossos apetites de pressa se acham
satisfeitos; e desta sorte quem será o homem mais feliz? Ou o
que naõ olha se naõ para a satisfaçam dos seus dezejos, que nam
póde deixar de gozar huns gostos muitos limitados, ou o que se
emprega em ter parte na satisfaçam dos outros, principalmente
naquelles que elle mesmo lhe procura, e que por seu meyo
comunica alguma extensam á espera da sua felicidade? O ultimo
obstaculo de que falaremos, e que se oppoem ao humor de
beneficiar, he a geral inquietaçam de que procede. Hum espirito
agitado por algum crime, ou descontente: hum espirito confuzo
pela má fortuna que experimenta, desconcertado pelas suas
paxoens, ou por qualquer outro accidente, nam tem lugar de
examinar a justiça, e a necessidade de hum favor que se lhe
pede, nem tem gosto algum naquelles que acompanham a
generozidade, e que nam tocam senam a hum espirito socegado, e
dado à virtude. O mais mizeravel de todos os Entes he aquelle
que he mais cheyo de inveja; e o que goza da maior felicidade he
aquelle que he mais comunicativo. Se buscarmos a rezidencia de
hum perfeito amor, o nam havemos achar senam na morada dos
Bemaventurados, onde a felicidade passa de hum coraçam a outro,
em huma circulaçam perpetua, e nam conserva a sua doçura, e a
sua pureza senaõ por este movimento. He advertencia muito
antiga, que aquelle que vai pedir algum favor a outro, deve
medirlhe o tempo, isto he ver quando está de bom humor, e
prompto para fazer tudo que se lhe pedir. Os que se acham
convencidos da sua integridade, satisfeitos de sy mesmos, e de
seu estado, cheyos de confiança no ser Supremo, e de esperança
de huma immortalidade glorioza, olham para tudo o que os cerca,
com huma vista cheia de benevolencia; e sam como aquellas
arvores plantadas em hum terreno fertil, que se
acham cheyas de fructos, com cujo pezo os ramos se inclinam, e
os offerecem a todos os que os querem colher. Finalmente, se o
espirito nam tiver esta tranquilidade, he hum final infalivel de
que nam està no seu estado natural; e naõ ha mais que procurar
se reduza a elle, e logo veremos como segue a sua inclinaçaõ que
o obriga a ser bemfeitor, e ajudar o proximo em tudo quanto
pode.