O Anonymo. Repartido pelas semanas, para divertimento e utilidade do publico: Num.° 6
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Livello 1
N.°. 6
Da Sobriedade, e Temperança.Livello 2
Como na folha antecedente, parece que
de alguma sorte defendi as demazias, e excessos que se practicam
no tempo prezente, me pareceo justo mostrar aos meus leitores,
que nem por isto perco de vista sobriedade, e temperança; e que
assim como emalguma (sic) occaziaõ se podem patrocinar certas
irregularidades, em nenhum tempo se deve deixar de recomendar
serem os homens sobrios, e temperados, para cumprirem as
obrigaçoens da natureza, e as da sociedade civil. Se o tempo
pelo abuzo, e corrupçaõ faz nacer algumas dezordens, todo o
tempo he proprio para se aconselhar a emmenda. Passe por graça o
passado, porque agora pertendo falar de veras, mostrando a razaõ
porque devemos evitar todos os excessos, e practicar a
sobriedade, e temperança, aplicando nos ao exercicio, e pratica
desta virtude, em que consiste huma boa parte das felicidades da
vida. Naõ ha coiza mais propria para inspirar esta
virtude, como he a vista das indecentes dezordens que produz a
intemperança. Mas a desgraça he que
no seculo prezente ha muito pouca necessidade desta industrioza
maxima, porque nam he precizo mandar embebedar nem os escravos,
nem os domesticos para se darem aos filhos estas boas liçoens da
temperança, porque muitas pessoas do nosso conhecimento de todos
os estados, tomam de muito boa vontade sobre sy este ministerio
dos escravos de Esparta, e com tanta efficacia, que muitas vezes
aquelles mesmos, que de menham ocupaõ algum lugar distinto, e
que talvez clamem contra a intemperança depois de tarde nos
offerecem huma clara prova dos excessos que della nacem; e se
para ensinar a temperança nam he precizo do que naõ se
practicar, ha prezentemente hum grande numero de mestres que
ensinam huma taõ boa virtude. Mas depois de se observarem os
effeitos irregulares que cauzam no espirito dos homens as
demazias das mezas, naõ he necessario mais, para quem emprega a
reflexaõ, para detestar a intemperança, e ao mesmo tempo
desprezar os intemperantes. Nam me quero valer de retratos, nem
empregar os diversos nomes de que muitos uzaõ, porque de algumas
circumstancia ainda que genericas, se nam adiante a malicia em
dizer que falo com alguma contracçaõ, excedendo a indiferença
generica de que empre uzo. Se os excessos, e
demazias sam muito contra as leys da Policia, e da practica da
boa civilidade, ainda saõ muito mais contra as leys da natureza,
e da razaõ; porque a obrigaçaõ de ser sobrios he fundada sobre a
que nos impoem, e determina a ley natural de conservarmos a
vida. O danno que a intemperança poda cauzar á saude, nam deve
fazer com que se conceba a ley que determina a sobriedade, como
huma simples ley de regimen indifferente para os costumes.
Nenhuma couza que ordena a ley natural pode ser nella
indifferente, e por isso me quero persuadir, em que esta ley faz
hum preceito expresso, para vermos melhor em que consiste o erro
commum dos omens. A natureza tem determinado a quantidade de
alimentos que devemos tomar segundo os graos de calor, e a
capacidade do nosso estomago, e tambem a sua qualidade, naõ
sómente pelo gosto, ou dezagrado que excitam no paladar, mas
tambem pelos bons, ou máos effeitos que podem produzir a
respeito da nossa saude. A saude he a constituiçam do corpo, em
que o ventro da vita que a anima obra com huma grande enirgia; e
assim alterar a saude, he o mesmo que diminuir a vida. Hum homem
vive menos quando vive mal, e morre desde que a sua saude se
acha totalmente destruida, e arruinada. A mesma ley que nos
prohibe abreviar a nossa vida, nos prohibe tambem damnificar
voluntariamente a nossa saude- Chamese a este respeito, se
quizerem, ley de regimen, porque importa pouco que se lhe dê
este nome, com tanto que se concorde em que este regimen he
muito conforme com esta Ley indispensavel. Deste principio se
segue que de qualquer sorte que se arruine a saude, quando
voluntariamente se obra, he sempre quebrantar, e infringir a ley
natural, que manda, e prescreve a sua consercaçaõ. A sobriedade,
assim como outra qualquer virtude, he hum meyo entre dous
extremos oppostos. Destruir o temperamento com abstinencias indiscretas naõ he hum excesso menos reprehensivel,
do que abreviar os dias com a superfluidade, de demazia de
alimentos; pois nam he menor homicida de sy mesmo o que toma
huma peçonha branda, que lentamente produz o seu effeito, do que
aquelle que rezoluto se mata com hum punhal; mas se sem
dificuldade, e hesitaçaõ se condena hum, para que hade
desculpar, e compadecer o outro? Se alguem duvidar que he contra
a lei da natureza, procurar cada hum, por qualquer principio que
seja, abreviar a sua vida, nam será precizo muito trabalho para
se provar. Esta ley nam manda que tratemos os outros melhor do
que a nós mesmos: e concordando geralmente em que ella prohibe
tirar a vida aos nossos semelhantes, ao menos or authoridade
privada, com muito mayor razam prohibe tirarmola a nos mesmos.
Agora, he que reparo que insensivelmente me fui afastando de
huns excessos para outros, porque a idèa me advirtio por hum
occulto movimento, a reconhecer que nam sómente os excessos da
meza sam os que conduzem os homens a hum estado desploravel, mas
ainda ha outros igualmente reprehensiveis, e que se devem
evitar, como contrarios à practica da virtude da temperança e
sobriedade, a qual tem huma extençaõ muito mais ampla, nobre, e
generoza. Deixemos de parte o como cada hum que se entrega ás
demazias, e excessos da gula, obra contra a lei da natureza,
diminuindo a sua vida com arruinar a sua saude, e passemos aos
que se entregaõ ao excesso de se matar por outro qualquer
principio. A este respeito me parece que estou ouvindo dizer,
que quando a vida nos he mais trabalhoza, e importuna, do que
gostoza, e feliz, dictando o mesmo instinto natural, que devemos
fazer tudo quanto podermos para conseguir alguma felicidade,
porque razaõ naõ poderemos conseguir esta, cortando, e
diminuindo o curso de huma penoza vida, quando no parecer do
Poeta Lacano, a morte he o ultimo trabalho della, e que por isso
a devem receber intrepidamente os homens? A isto respondo, que este
excesso ainda he muito mais reprehensivel do que outro qualquer;
porque pertencendo a Deos, de quem recebemos todo o nosso ser, a
nossa vida, nam devemos dispor della sem seu consentimento.
Acrecentemos mais a isto, o pouco conhecimento que temos das
nossas verdadeiras convenciencias, principalmente quando nos
cega alguma paixaõ violenta, para podermos julgar com segurança,
ainda das circunstancias mais funestas, e penozas, que a vida
nos he mais pezada do que conveniente: mas o certo he que ainda
nestas mesmas trabalhozas circunstancias, sempre nos he util a
vida, quando naõ seja para o prezente, ao menos para o futuro;
porque he sem duvida que nam vivemos senaõ porque Deos quer que
vivamos; e como Deos nam quer nada a nosso respeito, se naõ o
que nos pode fazer felices, sendo este o unico objecto que teve
quando nos creou, serà desprezar, e ainda regeitar a felicidade
que nos espera se fizermos das nossas proprias mãos instrumentos
para perdermos a nossa vida. E ainda supondo que esta nos serve
de grande pezo, nem por isso teremos rezam para a regeitar, ou
roubara nós mesmos, da mesma sorte que nos nam he licito, nem
permettido tirala a outro qualquer que prejudique os nossos
interesses, porque tanto direito temos a nossa vida, como á dos
outros. Fundados em huma maxima sempre falça, quando naõ he
modificada de que huma acçaõ he grande, e generoza, à proporçaõ
que custa mayor trabalho, e esforço, alguns homens famozos
refere a historia, que matando-se a sy mesmos, imaginaram poder
merecer os Elogios da Posteridade, e com effeito acharam alguns
Panegyristas nos faculos seguintes. Mas por enterrar hum punhar
no peito de hum Pae, custaria sem duvida ao cruel parricida hum
grande trabalho, e combates violentos, primeiro que
chegasse a pôr silencio na voz da natureza. E por ventura todos
estes combates, e todos estes esforços violentos, poderiam fazer
de hum crime tam horrorozo huma acçam meritoria? Certamente naõ;
porque luctar contra os proprios sentimentos nam he virtude, se
nam quando saõ viciozos estes mesmos sentimentos. Receber
intrepidamente a morte he valor; dala cada huma sy mesmo he
fraqueza. Ninguem a toma por suas proprias maõs se naõ para
fugir de hum trabalho que se considera insoportavel, e por se
achar jà cançado de sofrer: a violencia do remedio a que se
rezolve hum homem que sofre, quando se naõ trata de conservar a
vida, prova melhor o excesso da sua impaciencia, do que a
grandeza do seu valor. Satisfeitos com estas prudentes maximas
fundadas sobre a recta razam, e sobre a humanidade, nunca os
trabalhos maes honrrozos, poderam fazer com que os homens se
rezolvam a tirar com suas proprias mãos a sua vida. Para a practica desta virtude, nam ha
couza que contribua maes como he a sobriedade. Ha dous generos
da sobriedade; huma que consiste no uzo moderado dos alimentos,
a na recta maxima de conservar a vida, e isto he o de que atè
agora se tratou: a outra consiste no dezinterece, e bom uzo das
riquezas. Esta pertence à alma, assim como a outra pertence ao
corpo; de huma depende a saude, e a vida, da outra a virtude.
Ordinariamente
se chama no mundo fazer se hum homem honrra com o seu cabedal;
quando tem huma meza esplendida, assistindo em humas cazas
grandes adornadas com moveis, e alfayas excellentes, quando
occupa muitos criados, e tem varias carruagens, e tudo o maes
que pertence a huma boa equipage, e finalmente viver entre o
luxo quanto a mim, nam convenho neste termo tam especiozo,
debaxo de circunstancias tam abuzivas; e aquelle a quem com
justiça se pode aplicar, aquelle vlugar elogio, he a hum homem
sabio, e prudente, e sobre tudo àquelle que despende parte dos
seus cabedaes, sem detrimento da sua fortuna, em fazer bem aos
outros, e servir com elles de alivio aos mizeraveis, que
dependem do seu favor: porque se homem sabio, e prudente pode
descobrir, e achar alguma utilidade, e ventagem nas riquezas, he
em quanto ellas lhe procuram a agradavel satisfaçaõ, de fazer os
outros felices.
Esempio
Para mover os animos
dos mancebos Lacedemonios, para a pratica da sobriedade, e
temperança, se lhe offereciam aos olhos alguns Escravos, que
muito de prepozito, e expressamente mandavam embebedar, para
com este espectaculo lhe reprezentarem, como em hum quadro,
muito ao vivo, e fielmente o injuriozo desprezo de que he
sempre acompanhada a demazia de beber, e isto cauzava
ordinariamente huma impressam muito forte nos espiritos
daquelles mancebos, produzindo nelles hum horror a vicio, e
huma reformaçaõ neste costume.
Citazione/Motto
Mors ultima pena est
Nec metuenda viris.
Nec metuenda viris.
Esempio
Inutilmente fes o Persiano Usbeck a
seu amigo Ibbeno a apologia da morte que tomou por sua
vontade; porque os seus sofismas se nam podem conceber se
nam como frivolos paliativos do furor maes cego. E
persuadidos de que tirar cada hum a sy proprio a vida, nam
deixa de ser hum crime, he sem duvida que o conservala he
huma virtude.
Eteroritratto
Das differentes classes que ha
de ricos, os maes racionaes sam aquelles que de Pays em
filhos viveram sempre na opulencia, e que apenas sabem se hà
pessoa a quem falta o necessario. Na verdade estes sam
ordinariamente insensiveis à mizeria alhea; e a
naõ ser isto, nam teriamos de que os arguir, porque ser rico
naõ he crime. Aquelles a quem as riquezas corrompem, e
pervertem maes, saõ estes Cressos de baxa extracçam, e de
huma riqueza muito fresca, que parece trazem escripto na
testa a importancia de seus cabedaes, augmentando-se à
medida que se enche o seu thezouro, a fereza do seu
semblante, a sua arrogancia, a sua soberba, e sua elevaçaõ.
O q̃ deve consolar hum homē honesto, que se acha exposto aus
seus insultos he a concideraçaõ de que estas fortunas
enormes, acumuladas em pouco tempo, tam rapidamente se
adquirem, como se perdem. Para acumular riquezas immensas, e
dissipalas, ordinariamente nam he precizo maes do que duas
geraçoens. O pay ajunta, e o filho gasta; hum enriquesse, e
outro se arruina: este he o curso ordinario das coizas, e
isto he o que facilita o comercio da vida, sem o que os
cabedaes de huma familia nam poderiam circular. A este
respeito se podem referir muitos exemplos, e bem modernos,
de que me nam quero valer; porque ja disse que nem por
sombras quero exemplificar o que digo, para impedir a
malicia dos leitores, idear alguma contracçam, em que
verdadeiramente nam podia eu ser culpado, mas sim as suas
sinistras, e malignas aplicaçoens. Ordinariamente se entende
ser hum prudente economico aquelle que se sabe conservar
immediatamente, sem chegar à classe dos prodigos; e que nam
cuida em fazer escrupulo de algumas despezas, com tanto que
nellas nam gaste maes do que o que tem de renda sem bulir no
capital: consolar os infelices parece que nam he obrigaçaõ,
mas ninguem ignora que isto pode servir de grande gosto. Nam
sei porque fatilidade sucede, que os que sam maes
favorecidos dos bens da fortuna, se acham menos dispostos a
consolar, e socorrer os que se acham despidos delles. Os
pobres sam melhor soccorridos pelas pessoas quasi tam pobres
como elles, do que pelos ricos, e oppulentos. Parece que naõ ha compaxaõ senaõ para os males que se
experimentam em parte: porque hum homem opprimido com os
trabalhos, e afliçoens lança sobre sy mesmo, toda a sua
sensibilidade e o excesso da desgraça fas os homens tam
incapazes de commiseraçaõ, como o excesso da opulencia.
Quero-me tambem lembrar de outra couza que nam he menos
reparavel, a qual, he que entre as pessoas insensiveis a
miserias alheas, nam deixaõ de ter o primeiro lugar aquellas
que por seu estado saõ destinadas para nos intimarem a
caridade; mas póde ser que estes se imaginem dispensados da
obrigaçaõ as assistir, e occorrer às mizerias do proximo,
ficando compensada com o cuidado que tem, ou devem ter de
nos exhortar para a pratica desta virtude; ou porque
entendem que fazem bastante a respeito do seu proximo,
intercedendo por nós. Convenho em que isto he huma grande
caridade, mas nem por isso, podendo, deixaõ de ter a mesma
obrigaçaõ de acudir, e socorrer o seu proximo necessitado, e
de serem sensiveis às miserias alheas.