O Anonymo. Repartido pelas semanas, para divertimento e utilidade do publico: Num.° 4.
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Nivel 1
N.°. 4
Dos Sonhos.Nivel 2
Por pequenas que as coizas sejam, nam ha nenhuma, que deixe de
ser bastante para excitar alguma reflexam, que possa produzir
effeito no espirito do homem, que quer aproveitar o tempo em
discorrer; e eu quanto a mim entendo pelo que tenho prezenciado,
e ouvido, que todos os homens grandes practicaram sempre a
maxima de nam desprezar nada, porque tudo lhe pode ter alguma
serventia, ainda o que simplesmente serve para passar o tempo, e
de certo genero de divertimento honesto. Esta historia que se contou por certa, me fes examinar
com alguma deligencia se com effeito poderia ser tam absoluta
esta negativa de que se naõ deve dar credito aos sonhos; e do
que achei, quasi me rezolvi a ficar no estado da indiferença.
Porque, geralmente falando, os sonhos nam sam mais que mentiras,
e a sua interpretaçam ou frivola, ou duvidoza.
e o que a este respeito deixaram tambem escripto os Arabes,
dizendo que nam ha terra em que os homens deixem de se alimentar
de couzas cavadas da terra, por falta de outros nutrimentos
melhores. Nam ha genero algum de
extravagancias, nem da acçoens infelices, que naõ façam muitas
vezes obrar os sonhos, nam sómente aos que cuidam que passeam em
quanto dormem a que os Latinos chamaõ Somnambules, e os Gregos
hypnobates, mas principalmente aos credulos que os interpretam a
seu gosto, e q̃ delles recebem furiosas irregularidades no
espirito. Na Anthologia se refere que sonhando hum Avarento ter
feito huma despeza excessiva, acordando se enforcou, dezesperado
de huma tam grande perda que lhe reprezentou a sua imaginaçaõ.
E na verdade naõ pòde o espirito humano
figurar couza alguma mais contraria à razam, como he dar ás
reprezentaçoens mais indignas da noute, interpretaçoens que
promettem todo o genero de felicidade.
E finalmente se os sonhos merecem algum credito porque
algumas vezes vem do alto, que fizeram ao Ceo os que nunca
sonham, e que naõ recebem este beneficio?
que por ser tam
infame me parece justamente incapas de se referir. He bem
verdade que, se naõ quizermos desmentir todas as historias
sagradas e profanas, que referem sonhos de huma grande
consideraçam, podemos concordar em que se lhe deve dar credito,
e que nam deve ser tam absoluta a sua incredulidade.
E finalmente naõ podemos
negar que ha sonhos inteiramente Divinos;
Com tudo porêm sempre o mais seguro, e o mais certo he naõ dar
credito a semelhantes illussoens nocturnas, que ordinariamente
naõ sam outra couza mais que huma alteraçaõ dos humores, e
cantichos da fantezia de alguma sorte pervertida, e assento
firmemente em que a nenhum se deve dar credito seja qualquer que
for a sua natureza.
Relato general
Para seguir esta maxima como utilissima á
sociedade erudita, me aproveitei de huma istoria ou
verdadeira, ou fingida, que contou hum dos amigos que se
ajuntam em huma caza conhecida, para passarem em boa
conversaçaõ algum bocado de noute. Cada hum foi contando sua
galantaria, e este trouxe, naõ me lembra
porque motivo, huma istoria sucedida com o Prior de huma
terra vezinha da Corte. Costumava este Parrocho, por conta
das suas dependencias vir muitas vezes á Cidade, e de
ordinario se hospedava em caza de hum seu amigo, que o
tratava com cordialidade, e grandeza. Sempre que se
despedia, o importunava que fosse tambem passar com elle
alguns dias, para se divertir, e descançar dos enfadonhos
cuidados que lhe cauzava a sua occupaçaõ. Persuadiose o
homem que lizongearia muito o seu Reverendo hospede se
alguma occaziam aceitasse as suas repetidas offertas, e hum
anno na Estaçam proporcionada em que he mais agradavel o
campo, preparou-se, mais o seu criado, e deo comsigo em caza
do Prior. Fez-lhe muito boa cara, e hospedo-o com grandeza
até o terceiro dia; como se foi demorando já o hia
soffrendo, como dizem, sobre posse, porque era dos que se
nam esquecem da maxima de poupar, mas nam se atrevia a dizer
coiza em que mostrasse pervertida a sua boa vontade.
Ocorreolhe hum meio que julgou oppurtuno, mas effeito
mostrou nesta occaziam a sua pouca utilidade. Depois de cear
com o seu amigo, fez que tinha que sono, encostou-se à
menza, e em breve tempo principiou a sonhar. Consistia o
sonho em dizer que os hospedes ao terceiro dia enfadavam;
que jà era muito para hospede; que nam era bom ser a jente
importuna com huma demora demaziada, &c. e depois quando
lhe parecia que por este modo estava o seu hospede bem
advertido, fazia que acordava, e dizia:
Diálogo
valhame Deos, que tam má costume que tenho! em
pegando a dormir logo sonho, aposto eu que tambem agora
sonhei? Respondia-lhe o amigo, sim senhor, v.m. estava
falando só, mas eu naõ apliquei o ouvido para saber o
que era, porque nestas materias tenho pouca curiuzidade. Repetio o bom Reverendo algumas noutes
o mesmo, mas sempre com o infeliz sucesso de que o seu
hospede o naõ ouvia; atè que exesperado da pouca
curiozidade do amigo, rezolveo mandar fazer a sua cama
em huma caza que ficava muito mistica com o apozento do
hospede, e tanto que ambos se recolheram; elle muito de
seu vagar foi pondo os trastes da caza huns sobre
outros, e fez hum monte, e tanto que vio que tudo estava
em socego, deo com a armadilha no cham, para ver se com
aquelle estrondo acordando o seu hospede, e ouvindo-o
falar lhe crecia a curiozidade, ou o cuidado de ouvir o
que elle dizia. Principou a falar, e a practica sempre a
mesma encaminhada a verse livre daquella pençam, que já
a concebia como imposta no seu beneficio que de sua
natureza estava sem este encargo, ainda que he pençam
ordinaria dos Parrochos de Igrejas vizinhas da Corte.
Acabou o sonho; e pela manhan teve curiozidade de
perguntar ao amigo se tinha ouvido o estrondo? respondeo
que sim: continou em lhe perguntar se o tinha percebido
falar, a isto respondeo que era verdade que bem ouvira o
que tinha dito, porem que elle como amigo lhe
aconselhava que tomase o seu exemplo porque tinha
assentado em nam dar credito aos sonhos, que elle naõ
fazia cazo disso, e se foi deixando ficar.
Ejemplo
Nam ha coiza mais vam que o que se
escreveo nas Onerocritas, segundo o conceito de Artemidoro que foi do tempos dos Antoninos;
Ejemplo
O sonho que Pompeo teve
antes do combate de Pharfalia, em que se lhe reprezentou,
que fora ornar o Templo de Venus vencedora com muitos
despojos de guerra, nam lhe servio de outra coiza mais, que
para lhe dividir o espirito, deixando-o em duvida se esta
victoria dizia respeito a elle, ou a Cesar seu contrario,
que dizia ser descendente de Eneas, a quem esta Deoza
favoreceo tanto.
Ejemplo
Hum dos nossos Portuguezes
dando credito a hum sonho, que lhe reprezentou ter sua
mulher comettido adulterio, sem embargo da sua inoacencia,
na manham seguinte lhe tirou com hum punhal a vida.
Ejemplo
O ultimo dos Dionysios a quem a
sua tirannia fez tam celebres, mandou matar hum homem
chamado Marsias, por saber que estando dormindo sonhou que
matara este Tirano crendo que hum sonho semelhante, poderia
ser produzido dos pensamentos do dia.
Ejemplo
O Imperador Tiberio terceiro
desterrou a Felippe filho do Patricio Niceforo, só porque
que contou a seus amigos, que dormindo sonhara que huma
Aguia lhe cobria com as azas a cabeça, o que
Tiberio concebeu por hum prefagio da sua promoçam ao
Imperio.
Ejemplo
Dion Cassio diz que achando-se Cesar nas terras
Gaditanas em Espanha sonhou que comettera hum indigno
incesto com sua propria mãy, e Plutarco attribue o mesmo
sonho antes da sua passagem de Rubicon em Italia,
interpretando, ambos que por esta acçam tam criminoza, podia
conceber a esperança de obter a Monarquia de todo o mundo.
Ejemplo
Pausanias refere de hum certo
homem chamado Comon, que comettendo em sonhos hum semelhante
incesto com sua mãy, que era morta havia jà muito tempo, foi
para os Messinenses hum presagio da restituiçam futura da
sua Cidade.
Ejemplo
Vicente de Beavais observa no seu
espelho historial que Hugo Bispo de Auxerre, teve na noute
precedente ao dia da sua eleiçam hum sonho muito semelhante
aos antecedentes:
Cita/Lema
In nocte
quidem electionem suam pracedente, vidit in somnis, quod
Mater sua sibi esset copulanda nuptiali faedere.
Ejemplo
Solino refere que huns povos da Libya a quem
chama Atlantes, nunca sonham.
Ejemplo
Plutarco affirma que Cleon, e
Thrasymedas homens que viveram muitos annos nunca em sua
vida sonharam: e quasi em todos os Seculos, tem havido
pessoas de hum semelhante temperamento que passaram todas as
noutes sem experimentarem sonho algum.
Ejemplo
Certamente he o homem bem
ridiculo neste particular, assim como em outras muitas
coizas, e naõ pode deixar de cauzar hum grande
horror a impiedade dos Pagaõs que atè fizeraõ sonhar o mesmo
Jupiter, cujo sonho refere Pausanias,
Ejemplo
Em Dionysio Halicarnasseo se lê,
como hum Romano enfermo recuperou a saude depois de referir
o seu sonho ao Senado.
Ejemplo
Em Agathias que hum Filosofo
Grego estando dormido ouvio huns versos, que se lhe
disseram, nos quaes se expressava que os Persas eram
indignos de serem sepultados, porque a terra naõ queria
receber em si os incestuozo com suas proprias mães.
Ejemplo
Pausanias protestou que as
vizoens nocturnas que teve domindo o impediram para explicar
os seus sentimentos, sobre o que se passava no Templo de
Ceres Eleusina;
Ejemplo
e em outra parte refere que
Sofocles, recebeo, estando dormindo, huma ordem de Baccho,
para escrever huma Tragicomedia, de que os seus poucos annos
o faziam incapas, mas com tudo, que fazendo a experiencia
quando acordou, ficou admirado de ver que sahio maravilhoza
a sua compoziçam.
Ejemplo
Em Appiano se lé que Sylla, a
quem os Romanos chamavam o homem mais feliz, sonhara que o
chamava o seu destino, e referindo na manham seguinte a
seus amigos o mesmo sonho, fes o seu testamento, e com
effeito perto da noute lhe sobreveyo huma febre, e na noute
seguinte morreo na idade de sessenta annos.
Cita/Lema
vocari
sejam afacto,
Ejemplo
Este mesmo Sylla, foy o que
aconselhou Lucullo nos seus commentarios que lhe dedicou,
que sobre tudo desse credito aos sonhos:
assim o refere Plutarco na sua vida.
Cita/Lema
Nihil perinde fidele duceret firmum, ac quod in somniis demonstraretur,
Ejemplo
Hum sonho do Medico de Octavio
Cesar foi a cauza de se achar no combate dos campos
Filippicos, ede ter o meio de escapar, como diz Dirõ Cassio.
Ejemplo
Galeno no nono livro do seu
Methodo refere que por meio dos sonhos foi expressamente
obrigado por seu pay, em se aplicar à Medicina depois do
estudo da Filosofia;
Ejemplo
e no decimo livro do uzo das
partes protesta, que foi obridado a escrever, por meyo de
hum sonho, as maravilhas dos olhos, reprehendendo o
severamente seu pay, de que seria impio para como o seu
Creador se assim o naõ executasse.
Ejemplo
Em outros muitos lugares da mesma
obra repete o mesmo, atè que se desculpa de se servir de
demostraçoens Geometricas, sebendo muito bem quanto as
reprovavam os Medicos do seu tempo, uzando dellas por força,
o que escreve nestes termos:
Cita/Lema
Non lubens sed solum, ut Dei jussis satisfacerem,
mathematicis theurematibus sum usus.
Ejemplo
Cardano o quis nisto imitar,
quando declarou no livro da dua propria vida, que fora
advirtido em sonhos que puzesse na boca huma esmeralda que
trazia pendente ao peseosso, se queria perder a lembrança da
morte de seu filho, o que com effeito lhe succedeo.
Ejemplo
Por nam ser mais extenso deixo de
referir o sonho de Sugerio antes que fosse Abbade de S.
Dionysio, a que elle mesmo conta na vida que escreveo do Rey
Luis o Gordo.
Ejemplo
O do conselheiro Peirese que nam
he menos consideravel por ter hum successo verdadeiro: e
sómente me satifaço com referir dous maravilhozos exemplos a
este respeito.
Ejemplo
O primeiro he, que hum
conselheiro do Parlamento de Dyon chamado Carrê, ouvio
dormindo que se lhe diziam certas palavras Gregas, lingoa
que elle nam entendia, as quaes referindo-as se
interpretaraõ, e como a caza em que
rezidia ameaçava ruina, elle a dezemparou, e
tanto que della sahio, inteiramente cahio, e se arruinou.
Cita/Lema
abi, non
sentis infortunium tuum,
Ejemplo
O segundo exemplo he de Andrè
Pujon, que achando-se em Rion, estando dormindo sonhou que
fazendo hum anagrama do seu proprio nome achara que havia de
ser enforcado em Rion, pela pura combinaçam das letras na
lingoa Franceza: Pendu a Rion, sucesso que pouco depois
confirmou o effeito, porque em breve tempo se vio executada
a mesma sentença, que contra si tinha profirido naquelle
anagram sonhado.
Ejemplo
Naõ falo dos sonhos naturaes, em
que Zenon quis que todos se vissem, para nelles reconhecerem
o seu temperamento, e dos que sam provocados por algumas
pedras com a de que fala Solino que pondo se debaxo do
travisseiro da cama fas sonhar; por algumas plantas, como a
Munghoa, ou flor do sonho que os Embaixadores Hollandezes
dizem que acharam na China.
Ejemplo
porque Daniel naõ sómente interpretou os sonhos
do Rey Nabucodonosor, mas ainda adivinhou o mesmo que tinha
sonhado, no tempo que o Rey se tinha esquecido delle.