O Anonymo. Repartido pelas semanas, para divertimento e utilidade do publico: Num.° 13.
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Niveau 1
N.° 13.
Inteligencia de huma Inscripçaõ AntigaNiveau 2
Metatextualité
No ultimo discurso que sahio,
insinuei ao publico a noticia de huma inscripçaõ sepulchral
que se achou nesta Cidade, expressando juntamente o quanto
se devia conservar, e estimar huma tal memoria, nam só para
credito da antiguidade, mas tambem pela raridade com que
estava escripta. Disse tambem aonde estava a duvida da sua
verdadeira inteligencia, e que tinha recorrido a varias
pessoas que julgava intelligentes, e com alguma noticia maes
distinta da erudiçam antiga para ouvir seus pareceres;
comunicalos ao publico, concluindo delles
alguma cousa com que podesse estabelecer huma razam ao menos
de verosimilidade. Nada disto consegui, até que por ultimo
expuz geralmente aos olhos de todos a mesma inscripçam, e a
duvida, sem querer resolver, porque como toda a a modestia,
e comedimento tratei de esperar que houvesse algum curiozo
que particularmente me mandasse algum parecer sobre isto
para delle me aproveitar, e depois fazer á republica das
letras este beneficio, que em outra qualquer parte do mundo
naõ deixaria de se estimar, quando nesta conheço que he o de
que se faz menos cazo; porque ha muita gente que entende ser
muito inferior a utilidade de pulir o juizo, e o engenho, à
outra de accumular ambiciozamente lucros de alguma occupaçaõ
rendoza; o que entende ser incompativel a aplicaçaõ à
historia antiga ou Ecclesiastica, ou Profana com outro
qualquer estudo. Mas como para estes me nam canso, só
pertendo falar com os que sabem ouvir; e assim já que me
metti em dar a referida noticia, pareceme que tenho tambem a
obrigaçaõ de dizer o meu sentimento a todo o risco; naõ temo
a censura porque sou o primeiro poderaõ os criticos,
malevolos dizer que naõ he de seu gosto a inteligencia que
offereço, mas lembrem-se que dous mezes, me naõ
cõmunicaraõ socorro algum para outra melhor, com o que fica
sendo sempre superior o meu trabalho á sua malidicencia: os
Doutos benignamente me ham de tratar, conhecendo a utilidade
deste trabalho, e que nestas materias quando se naõ dê huma
razam verdadeira, porque muitas vezes se naõ póde achar na
historia a narraçaõ de hum facto particular de hum Questor
de huma Provincia tam remota da cabeça do Imperio Romano,
como tudo muito bem se satisfazem quando se explica qualquer
couza deste genero, de alguma sorte que possa ser provavel,
e verosimel, estabelecida com alguma razam forte, e bem
fundada em cauzas naturaes, ou comprovada com algum exemplo
deduzido da historia, por donde se insira huma boa razam de
semelhança.
Récit général
tive a
occaziaõ de preguntar a hum engenhozo Estrangeiro muito
amante das bellas letras, e ainda que isto foi tambem
conversando familiarmente, elle me deo huma razam tam boa,
que entendi obraria com injustiça se a naõ manifestasse, ou
se aquizesse adoptar como minha; e se naõ tivesse descoberto
à custa do meu trabalho outra que se estabelece com hum
lugar da historia antiga, certamente com ella me havia de
acomodar muito bem, e o publico entendo naõ deixaria de
ficar satisfeito. Disse pois este estudiozo sugeito:
Dialogue
Que primeiro de tudo se devia
saber, que os antigos, principalmente no tempo do
Paganismo, tudo atribuiaõ ao fado, porque criam
verdadeiramente que todas as disposiçoens ou de
felicidade, ou de desgraça, eraõ filhas só do acazo, e
nam da providencia. Que tinham tambem por costume no
tempo do inverno acender certos brazeiros com carvam de
sobro, e que estes para melhor rescadarem o ar que
estava nas cazas, os suspendiam no tecto dellas por huma
cadea; pelo que podia muito bem ser, que succedendo a
este Questor ficar maes tempo aplicado a algum negocio,
sem advertir que o fogo consumindo, ou ratificando o
ambiente de sorte que o ar subtil naõ podesse servir
para respiraçaõ, se achou na caza morto, por esta
urgencia do fado, que sempre se sepunha
concorresse para a cazualidade do descuido que teve, e
q̃ a chando o seus pays assim sem vida, mandaraõ gravar
na lapide sepulchral que fizeraõ à sua memoria a origem
que tinha tido a sua morte, e que por este motivo se lia
na Inscripçaõ se
porque tambem esta expressaõ de tomar a morte pelas
propias mãos era uzual entre os antigos, com relaçaõ
sempre as disposiçoens do fado. Fizica, e historicamente
quanto a mim estava satisfeita a duvida: mas passemos
agora á minha inteligencia, que sem desprezar a
antecedente, me parece naõ ser menos bem estabelecida.
Devemos tambem primeiramente advertir q̃ os antigos se
costumavam justificar para com os Deozes, de qualquer
delicto de que eraõ acuzados injustamente, testeficando
por meyo do fogo, e do incenso a sua innocencia; e ainda
que deste modo de justificaçaõ naõ haja muitas provas,
Que naõ fosse brazeiro
de comodidade, mas sim Turibulo, ou outro instromento
proprio do ministerio de invocar os Deozes se colhe da
palavra pensile a que os Gregos chamam demiaterion que
he o mesmo que Turibulo, suspensorio, ou vaso proprio
para o fogo, e incenso dos sacraficios. E assim concluo
que me parece, que occupando este homem hum emprego
publico, como era o de receber as rendas que em suas
respectivas Provincias pertenciaõ aos Romanos, sendo
mancebo, vigorozo, e cheyo de honra quiz antes sofrer a
morte voluntario, do que sogeitarse a ella por meyo de algum Decreto extrahido por
informaçoens sinistras; e que acendendo o Turibulo,
suspensorio, ou vazo dedicado ao serviço dos Deozes,
justificando para com elles a sua innocencia, recebeo
por suas proprias mãos a morte. Que esta Inscripçaõ
sepulchral he rara, naõ ha duvida alguma, pois com
semelhante expressam em toda a historia antiga, e em
todos os authores, que cuidadozamente procuraraõ ajuntar
todas as Incripçoens lapidares, se naõ encontra maes do
que huma semelhante à nossa de que tratamos, a qual Segundo o que fica dito me
parece se deve entender a Inscripçaõ no fórma seguinte.
As sobrediras
inteligencias sam as que acho maes naturaes, e
verosimeis, e com que entendo podem ficar satisfeitos os
leitores; a quem naõ agradarem façaõ outras melhores; e
eu serei o primeiro que lhe agradeça este beneficio,
porque estimo muito maes o alheyo quando he bom, do q̃ o
meu ainda quando me pareça melhor, e naõ sou dos que se
persuadem que só o que elles dizem he certo, e
incontrastavel: o que naõ espero he critica severa, pois
sempre cuidei em naõ exceder os termos da modestia, cujo
excesso nos escriptos entre os Doutos foi sempre
abominavel, e se algumas vezes acha lugar, he nos
ignorantes, ou em animos malevolos, e mal dizentes, que
attacam indeferentemente as obras, e os sogeitos, sem
mais cauza que a irregularidade de seus proprios genios.
Citation/Devise
Urgente fato
pruna in pensili positi ipse sanum necavit
Exemple
ha como tudo a que se
encontra em Spartiano referido por Diam Callio
escrevendo do Imperador Hadriano; porque mandando
este tirar a vida a Severiano na idade de noventa
annos, por queixas que delle injustamente se
fizeram, antes de receber a morte disse: uzemos das
palavras do mesmo Diaõ:
Segundo este costume me parece que assim succedeo na
morte deste nosso Questor;
Citation/Devise
sed Severianus, prinsquam jugularetur, ignem poscit, atque incenso thure, vos,
inquit, o Dii testor, inoxium me esse.
Exemple
ou porque o Imperador, ou
Senado Romano lhe mandaria tirar a vida, ou porque
elle sabendo as acuzaçoens serem injustas, naõ quiz
esperar o Decreto fatal de perder a vida nas maõs
alheas, testificando aos Deozes pelo incenso, e pelo
fogo a sua innocencia elle mesmo se matou, tomando
generozamente por suas proprias mãos a morte, assim
como de Catam Uticense refere Horacio Catonis
sem nos afastarmos de que sempre quizeraõ mostrar
que nisto concorreo a urgencia do fado, ou do
destino, que tinhaõ por cauza proxima de todos os
seus acontecimentos.
Citation/Devise
nobile lethum,
Exemple
descobrio em Parma Andrè
Naugerio no anno de 1524. e se achou copiada nas
memorias de Pedro Bembo, da qual depois fez tambem
mençaõ Erico Puteano em huma carta que escreveo ao
Pedro Cantonio Juris consulto da Cidade de Milaõ, no
anno 1599. e naõ sei que haja outras; pelo que
fazendo-se esta rara, devia ser conservada com toda
a estimaçam.
Exemple
Diis Manibus (este
era o titulo que ordinariamente mandavaõ gravar nas
memorias sepulcraes que faziam os Romanos, invocando
para tudo os Deozes) Lucio Varram, e Fulvia Elia
mandaram fabricar este monumento para si e para
memoria de seu filho Marco Varram Questor, que na idade de trinta e tres annos, pela
urgencia do fado, justificando-se para com os Deozes
enchendo o Turibulo de brazas, com o fogo, e com o
incenso, estando em perfeita saude, se matou por
suas proprias mãos.