O Anonymo. Repartido pelas semanas, para divertimento e utilidade do publico: Num. 6

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Niveau 1

N.°.6

Meyo do Sonho Moral.

Niveau 2

Continuando a mesma pratica com que sonhei, estavaõ o Rey, e o Filosofo, sem mais comprimentos, nem mais preambulos irey dizendo ella, o que me lembrar. Parece-me, que fiquei no ponto em que Alexandre pedia a Diogenes lhe desse alguns documentos para se livrar da sua censura, e daqui continuarey com a resposta, que lhe deu o Filosofo.

Rêve

D. Naõ he facil deter as agoas de hum Real Rio, que trasborda. E o que naõ aprendestes de Seneca com as suas sentenças moraes, nam he possivel, que o capacite Diogenes com a critica. Se fores bom com deveis, naõ faraõ impressam alguma as mordeduras; porque os Principes quando saõ justos quebraõ todos os dentes aos Zoylos, e fazem emudecer aos malignos. A. Com tudo ensina-me alguma cousa, para que eu me possa fazer tambem impenetravel às mordeduras destes! D. Jà que assim quereis, eu vos darey algumas advertencias naõ de ignorante, e cheyas de Pedantismo; mas sim de Filosofo, e cheyas de doutrina verdadeira;

Hétéroportrait

porque hum Principe para ser bem educado, naõ se deve fiar de hum Pedagogo ignorante, mas deve entregarse a hum bom Filosofo; nam importa que seja austero, com tanto, que lhe ensine o ser humano, com lhe lembrar que he homem, e que se naõ queira fazer Nume.
A. Pareceme, que quando os Principes saõ bons, naõ deixaõ de ser Numes da terra. D.

Hétéroportrait

He verdade, que saõ Numes da terra, mas he quando se conformam com os do Ceo; porém se a este voltaõ as costas, saõ ainda muito menos, que homens, ainda que a adulaçaõ lhe chame semideoses. Isto convence que naõ saõ nem Numes, nem homens, porque saõ meyos homens, e meyos Numes, pelo que nem saõ Numes, nem homens inteiros: e assim menos que huns, e outros: o porisso (sic)] menos, que aquelles homens, que saõ de inteiriza, e simplicidade, propria dos Numes, a quem imitaõ com estudo, e zellaõ como profissam.
A. Muito bem entendido; mas o ponto consiste em poder esta qualificaçaõ taõ difficultoza. Tu muito bem sabes quantas ocasioens tem hum Soberano de cair nos enganos. D. Assim he; mas quando aplica a reflexaõ em ver que ha de dar conta de si a outro Soberano muito mayor que elle; e naõ sómente de si, mas tambem de todos os que se entregáraõ ao seu cuidado, para os governar, e naõ para os destruir; para que os conduza para a vida, e naõ para os arrastrar para a morte; naõ tenha medo, que ponha o pè em falso. O Scetro, que se curva para a Divindade, está livre de quebrar. Fazem-se eternos os Reynos, quando os Reys se naõ esquecem da eternidade, e se lembraõ de que saõ mortaes; este he o caminho verdadeiro, sobre o qual quasi nunca cae quem por elle anda; pois quando os Reys se lembraõ de que saõ mortaes, se immortalizam tambem com a boa fama. A. Muito me agrada, ver que naõ es daquelles Filofos Birbantes, que ensinam, que a immortalidade da alma, e juntamente o mundo nasceraõ por acazo; por isso de cada vez mais me encho de animo para as emprezas generosas, que possaõ encher a boca da fama, e tenho por argumento forte da nossa immortalidade, quando vejo em hum peito nobre o desejo, a apetite da Gloria. D. Nenhuma outra cousa he semilhante gloria mais, que hum fumo que desaparece, o qual nace como tenue chama, que se eleva destas cousas do mundo, que naõ saõ mais que fragil palha, e està delirante quem sobre ellas se segura. A verdadeira gloria he aquella, que naõ consiste na vaidade de deixar grande nome, mas sim na substancia da virtude. Para esta se conseguir naõ basta lançar os fundamentos, mas he necessario estabelecer o edificio de sorte, que seja habitado, sem que nisto possa entrar o vento da ambiçaõ. Quanto mayor he a virtude de hum Principe, tanto mais se reconhece por grande. E assim pela magnifica construcçaõ do seu Palacio, se argumenta, e conhece a soberana Magestade do seu poder. Dame atençaõ ó Grande Alexandre; porque se atè agora falei como Filosofo a hum Principe, agora falo como Pay a hum filho. Naõ basta principiar bem: he necessario procurar acabar bem. A arte de Reynar he a mais difficultosa de todas; porque mais que todas tem mais perigos: Quem caminha sobre as emminencias hade procurar segurar bem o pèm e acautelar-se muito das vertigens. As coroas causaõ esta enfermidade, e quem sustenta na cabeça a coroa, traz sobre ella hum mundo taõ voluvel que nunca para, e sempre se renova assim para os Principes como para os vassallos.

Hétéroportrait

Todos os principios saõ agradaveis, e plausiveis ainda nos Reynos; porque cada Rey procura, assim que a natureza, ou a eleiçaõ o poem no Trono, cativar a benevolencia dos subditos com huma acertada prespectiva, e muito conforme com as regras da Optica Politica: mas he necessario atender muito à mutaçaõ das cenas, e esperar o que se aparelha no retrocenio. Os Principados ordinariamente nos principios saõ comicos, e nos fins Tragicos, e este talvez será o motivo porque as Tragedias naõ admitem se naõ pessoas Reaes, e famosas, ao mesmo tempo que a comedia póde introduzir pessoas de menos qualidade, e ainda vulgares. He suave a sorte de hum Reyno debaixo de hum Rey novo, e nunca melhor, nem mais alegres recebem os subditos as Leys, como he debaixo de hum Imperio novo, ou renovado. Mas muitas vezes ficaõ enganados vendo que saõ efimeras as suas alegrias, porque em pouco tempo se sentem maltratar pela mesma mão que os enchia de beneficios, e aquelle mesmo ceptro que parecia estar prompto para lhe communicar todos os alivios, se converte em pezado jugo para os oprimir. He muito util aos que sobem ao Trono o conceito que espalhaõ, e difundem da sua clemencia, mas he de muito maior proveito se proseguem em exercitala; porque quando succede descobrirse esta mudança tanto mais chegam a ser aborrecidos, quanto de antes eraõ amados. Com o favor da fortuna de que muito se fiaõ, assistidos de pessimos conselheiros, aos quaes confiaõ muito, correm para o precipicio, e convertem o Trono em tumba, porque lançaõ peor cheiro em quanto vivos, o que naõ tem depois da morte. A natureza do mando he de ordinario, conservarse com os mesmos meyos comque se introduzio, quando estes sejaõ honestos, e suaves. E por isso o introduzir-se com o engano de ser lobo disfarçado em cordeiro, como violento naõ dura: descobrese a tirania, quando se acha seguro o dano. As honras mudaõ os costumes, o por isso devem mudarse os costumes à proporçaõ que as honras se adquirem, e se conseguem. O bem publico ha de ser o objecto primario de hum Principe perfeito: e nisto he que principalmente difere do Tirano, que este procura tudo o que he só conveniencia sua, e aquelle mais que o seu interesse procura o dos proprios subditos. Ha de ser Pastor dos Povos; porque se estes naõ forem tratados como ovelhas, se trocaõ, e convertem em cães porque o Pastor se converte em lobo. Aquelle será mao Principe, que levado do leve sopro de huma prospera fortuna uzurpa a licença de ser Tirano. Naõ se aplicando ao cuidado dos seus, mas sim a todo a genero de excessos, sómente mostra que he Principe porque sobre todos pratica sem lemites os estimulos da sua inclinaçaõ. Mas o verdadeiro, o bom, e o honesto sabe muito bem que quanto mais se lhe augmenta o Dominio, tanto mais a divida se accrescenta. E por isso naõ ha quem seja mais obrigado, porque tambem naõ ha quem deva dar mayor conta do que o Principe. A sua vigilancia ha de defender o somno de todos; o seu trabalho, o ocio commum; a sua industria, as riquezas dos mais, e a sua occupaçaõ as profissoens de cada hum. Estenda as azas para proteger, e naõ os braços para esgremir, comque adquira tanto mayor explendor, quanto mais esplendido, e magnanimo dilate a sombra do seu amparo, a qual fará comque apareça mais sublime, quando chegue a ser mais difuza.
A. Muito me consalàram estes documentos, e na verdade saõ dignos de toda a reflexaõ de hum Principe, que todo o seu intenta he governar bem; mas quizera, que me explicasses, quaes saõ as circunstancias, que fazem a hum Principe conspicuo, e preclaro. D. A prudencia, e a virtude; esta resplandeça na sua vida, e aquella reluza nas suas acçoens. He muito conveniente, e ainda necessario, q̃ se exalte com a bondade sobre todos, quem sobre estes com a bondade se eleva.

Exemple

Naõ julgava Ciro, que o Imperio era devido se naõ àquelle que era melhor de todos os que devia governar:
e com razam, porque o mais digno deve ser sempre o optimo. Assim o Rey de merecimento se forma pela eminencia da virtude, e naõ do posto: porque do obrar bem, e de naõ fazer mal procede a eleiçaõ para o mãdo. Se hum Rey deve ser semelhante ao Sol; este quando nace extingue o luzimento às estrellas; porq̃ delle recebem a luz, ainda q̃ aparecendo outra mayor suprimem a sua, e como regatos luminozos reconhecem a fonte de donde nacem quãdo na presença do Sol ocultaõ o seu brilhar. Por isso deve o Rey naõ só resplandecer mais que os subditos mais ainda resplandecer só entre elles. Hade explorar cóm o ouvido fiel, e naõ com o lizongeiro qual he a sua fama, seguro de q̃ qualquer que for, ou boa, ou mà será sempre grande; porque todos os feitos dos Grandes saõ grandes, e as acçoens saõ como suppostos. Tende paciencia, que ainda direi mais:

Hétéroportrait

Hade o Principe comunicar a sua virtude aos subditos da mesma sorte, que o Sol participa a sua luz aos Astros. Estes a pedem emprestada ao Sol, e muito bem lhe pagam o uzufruto com os seus nocturnos luzimentos. Se o Principe for bom, seraõ tambem bõs os subditos, e de ordinario obsequiosos, e flexiveis aos seus arbitrios, porque sempre seraõ justos. E he muito mais facil governar os bons, quando he bom o q̃ manda, e dificultozo quando o que governa he pessimo. Hum animo nobre tem huma natural repugancia a sugeitarse a hum animo vil, por ser criminozo. Sobre tudo o exemplo da cabeça influe em todos os membros, e estes se acham enfermos, quando padece aquella. He o Principe hum espelho, em que se revem os subditos; se o espelho naõ he claro, ou he quebrado, os rostos se reflectem disformes, e confuzos; porque quaes saõ os Principes taes saõ tambem os subditos. Com o exemplo de hum Rey perfeito se compoem o mundo, mas com o de hum pèssimo se descompoem. Se o Sol no Ceo fizesse desordenadamente o seu curso, todas as outras estrelas menores andariaõ confuzas, e as Esferas seriaõ bosques dos Monstros errantes sem concerto, e sem ordem ao mesmo passo, que ellas saõ as carreiras dos Planetas errantes sem erro. Naõ tem os subditos tanta necessidade de mãdo como de exemplo, para que as Leys possaõ nelles fazer todo o seu effeito; porque o obsequio para com o Principe nacido pelo genio de o omular, he mais vigorozo, que qualquer pena determinada pelas Leys. E esta he a singular condiçaõ dos Principes, que tudo quanto fazem parece, que he o que mandam; pois com o que fazem ensinam, e com o que obram exortam. O Principe, que he viciozo naõ sómente concebe os delictos, mas tambem os fomenta, e prejudica mais com o exemplo, que com opecado. A culpa de hum he mayor, que os outros, chega a propogarse cruelmente nos que lhe saõ inferiores. Tomaõ animo os subditos, quando o Soberano toma toda a licença para pecar.
Atè aqui he o que pude ordenar dos poucos apontamentos, que fiz, porque daqui por diante estaõ muito confuzos, e necessito de mais tempo até para entender o que escrevi com a pressa de me naõ escapar nada. Se lhe parecer o sonho grande, e a pratica extensa, bem tempo tem para o lerem de seu vagar, porque naõ sendo tudo de huma vez he mais sofrivel, e he o que tenho contra Diogenes, que là tem seu tanto, ou quanto de impertinente, mas o que he bom naõ deve enfadar; porque suposto, que esta pratica era feita aos Principes, he muito acomodada para todos os que sem o serem exercitam algum mando, e tem debaxo da sua jurisdiçaõ sogeitos, que tem por obrigaçaõ obedecerlhe, e bem haviados estavamos se o que se diz a hum naõ houvera de servir para muitos em quem guarda a proporçaõ, ha quasi as mesmas circunstancias, &c.
Lisboa: Na Officina de Pedro Ferreira, Impressor da Augustissima Rainha Nossa Senhora,