O Anonymo. Repartido pelas semanas, para divertimento e utilidade do publico: Num. 5
Permalink: https://gams.uni-graz.at/o:mws.7000
Level 1
N.°.5
Sonho moral.Level 2
Depois de ter revolvido varios daquelles papeis para ver em
que havia pegar primeiro, como naõ faço esta diligencia se naõ
quando quero fazer horas para me deitar, apertou como o sono, e
naõ tive mais remedio, que ceder ás suas forças, e dar lugar a
que fizesse de mim o que lhe pareceo. Encosteime hum pouco com
tençaõ de naõ ser por muito tempo, mas enganeime de meyo a meyo:
porq̃ pegou em mim de taõ de võtade, que assim vestido, inteiro,
e entregado passei toda a noite sem mudar de sitio.
General account
Acordei pela manhan, vi o dia
claro, e disse comigo: boa a fiz; isto para a saude he huma maravilha; naõ havia osso que me naõ
doesse, porque fiquei com o corpo torcido, encostado a hum
braço, o pescoço dependurado, e todo eu feito em hum
novello. Mas tudo isto me pareceu nada àvista (sic) de
gosto, que tive lembrando-me do que sonhei em todo aquelle
tempo; e nesta ocasiaõ acabei de conhecer, que naõ ha cousa
mais certa, que sonhar hum homem dormindo o que muitas vezes
fala acordado; ou que retendo a idèa muitas especies do que
se pratìca de dia, fórma a imaginaçaõ as praticas, as
vistas, os passeos, as negociaçoens, e outras cousas
semelhantes de que se excitam os sonhos; o como isto se faz,
corre por conta dos Medicos; e certo he, que eu sonhei com o
mesmo sobre que tinha ouvido falar no dia antecedente, que
foi sobre huma conferencia, ou conversaçaõ que teve
Alexandre com Diogenes Cinico. Como esta foi a ultima cousa
sobre que discorri com outros amigos, foi tambem a primeira
com que sonhei, e ainda que isto foi entre especies
confuzas, quando acordei là me lembràram algumas, e o melhor
que pude fiz meus apontamentos para naõ perder de todo a
lembrança, com tençaõ de quando tivesse tempo, pôr em alguma
ordem esta pratîca, porque lá viria tempo que servisse.
Assim como pude fui escrevendo o que me lembrava, e tal qual
he ahi a remetto aos amigos da Corte, e segundo o que me
parece, entendo que della naõ falta que aproveitar, o ponto
he saber bem escolher: mas a isto digo: Alexandre.
Estando
nestas ultimas palavras, e tendo Diogenes ja quasi a
resposta na boca, dei huma volta, e acordei, mas como o sono
era bastante, peguei outra vez nelle, e como a idea se
achava gostoza de ouvir semelhante pratica, tornei outra vez
a continuar no mesmo sonho, e là me causava meus sustos ver,
que se perderia o fio, mas sucedeume bem, porque naõ perdi
couza alguma daquella boa conversaçaõ, e fiz muito para que
me naõ esquecesse nada. Como foi dilatada, custoume muito
fazer della huma reminiscencia, e pouco a pouco direi o que
me for lembrando. e já naõ pòde ser por junto serà por
partes, por naõ perder o costume; que assim faz quem como eu
tem pouca memoria, e menos entendimento, mas a vontade he
grande de servir o publico em cousa em que lhe possa ter
alguma serventia.
Citation/Motto
quis potest capere capiat
Dream
Naõ me conheces? Pois sabe
que sou o Grande Alexandre. Diogenes. E tu naõ me
conheces ò Magnanimo Rey? Pois eu sou Diogenes. A. Eu
sou aquelle filho de Jupiter Amon. D. E eu sou o filho
de A. Eu sou o que descarrego vigorozos golpes com a
espada. D. E eu os descarrego tambem com a
lingoa. A. Eu disbarato exercitos inteiros com os meus
soldados. D. E eu acometo com os meus dentes Cidades
inteiras. A. Naõ sabes, que sou o Macedonico! D. E eu o
Cinico, ainda que me naõ importa que saibas. A. Eu naõ
caibo no Mundo. D. E para mim he bastante lugar esta
tina. A. Naõ tremes com a minha presença? D. Eu naõ sou
folha, que haja de tremer com qualquer vento; porque o
poder humano he hum leve vento a respeito da
Omnipotentia Divina. A. Eu sou aquelle vento, que
arranca as arvores mais antigas, e que destruo os corpos
mais robustos. D. Pois quanto mas sopras, mais depressa
passas. A. Ao meu Cetro se curvaõ os Tronos, e se
postraõ os Imperios. D. Naõ: elle he o que se curva para
usurpar Imperios, e pescar Tronos. A. Logo eu sou
ladram, usurpador, e pescador! D.
A. Tu Diogenes tens muita liberdade em
falar! D. Porque tambem vòs fois muito resoluto em
adquirir. A. Eu se tomo os Estados alheos he para os
dar, e naõ para os reter. D. Excellente generosidade de
ser liberal do que naõ he seu? A. Os Reys tem o Direito
nas armas, e valem mais as pontas das espadas, que os
paragrafos das Leys para decidir qual seja o Senhor do
Mundo: porque nacendo este livre, foy decretado pela
fortuna para quem o ocupasse com valor: e por isso he de
quem o ganha. D. As armas ordinariamente se apoderam com
a força de tudo quanto se naõ pòde conseguir com a
razaõ. Vòs outros destruidores da terra formais de cada
pretexto hum artigo para convalidar as vossas
conquistas. Vós como filho putativo de Jupiter
pertendeis ter nacido herdeiro do universo, mas nisto
vos enganais muito; porq̃ vos naõ pertence mais que sete
palmos da terra como a outro qualquer homem. E assim
seja o vosso sepulcro hum magestozo cenotafio, tam
magnifico como o vosso Trono, A. Ouvis amigos como
vos trata este Filosofo, ou como vos morde este Cinico?
D. Naõ vos admireis; porque naõ he justo que trate
melhor os creados do que o amo. A.
A. Grande liberdade de Filosofo! ora prova
o que dizes, e ouviremos a tua prova, mas esta ha de ser
som sophismas. D. Eu abomino os sophismas, e
Todos elles foraõ Espectros da Filosofia, Fantasmas da
verdade, Mascaras as Escolas, Hipocritas das Academias,
e Romendões dos argumentos;
A. Assim serà, mas eu com tudo vejo que trazes hum
capote bem forrado. D. mas para ensinar que
se devem evitar as frioleiras, deixando o uzo dellas
para mancebos, que sómente cuidaõ no que lhes permitte a
sua idade: porque este genero de falar naõ concorda com
a Filosofia seria. A. Tudo està muito bem;
mas tu ainda me naõ mostras como estes meus creados
sejaõ aquelles que simbolicamente chamastes? D. Entendo,
que quereis cossar a cegarrega para que cante naõ sendo
Agosto! Naõ me façais falar; porque direi muito, e mais
do que talvez tereis gosto de ouvir. A. Dize quanto
quizeres, pois eu vim muito de proposito para te ouvir,
já que te chamas cegarrega. D. Eu sim sou cegarrega; mas
das que se nutrem com o orvalho; isto he com a razaõ
natural que o Ceo me destilla; e por isso inimigo do
artificio com que se alimentaõ ainda à vossa custa esses
qu e vos assistem, e por isto saõ aquelles que eu disse.
A. Mas como? D. A. Queres por
ventura dizer nisto o ouro? D. Isso mesmo quero dizer,
da mesma sorte que pela prata se figura o leite, que
atrahe a si tambem as mosca: A. Disseste muito
bem, mas prova agora como saõ bichos. D. Isto he muito
facil de provar; A. Ora vede amigos
como o cinico vos trata; mas que semelhança tem com as
toupeiras. D. Oh (dizem entaõ) quem
tivera servido taõ cuidadosamente a Deos assim como
servimos ao Principe que este foi só o nosso Deos; mas
Deos ordinariamente sem mãos, como Dagon, porque o
Principe que naõ dá, e naõ premea he muito semelhante a
elle, e por isto naõ foi Deos verdadeiro, mas
supersticioso, que somente lhe agrada o fumo: sendo que
o verdadeiro chamando-se Deos porque dà, difunde, e
espalha beneficio a luz, e porque naõ he hum Deos das
toupeiras, por isso aquelles o naõ conhecem. A. Dizes
excellentemente; mas que semelhança tem com os ratos? D.
A.
Muito bem te tenho entendido amigo Diogenes; mas dame
tambem agora algum documento que me sirva de antidoto
para me perservar da tua censura critica.
Citation/Motto
Serapis que morde.
Heteroportrait
Sim tudo isto es. Porque es ladraõ
coroado, e pescador de enguias: pois quando hum Rey
toma o que he seu, he ladram coroado. e pescador de
enguias, porque saõ de pouca consideraçaõ as
conquistas terenas. Vôs outros Monarcas naõ fazeis
escrupulo de usurpar Provincias inteiras, ao mesmo
tempo que mandaes tirar a vida aos miseraveis, que
roubaõ huma pequena ceza. Pescaes os Reynos no
turbido das revoluçoens, assim como faz o Pescador
com as enguias batendo as aguas dos lagos, mas
depois vos fogem tambem das mãos os Reynos, assim
como ao pescador fogem as anguias. Nesta mũdana
pesca tudo o que se toma, quanto mais se aperta
tanto mais foge.
Heteroportrait
quaes seraõ os vossos creados, e os
vossos cortezãos depois da morte? Naõ seraõ outros
mais que aranhas, ratos, toupeiras, bichos, moscas;
que todos estes verdadeiramente saõ os symbolos dos
que assistem nas Cortes.
Heteroportrait
E com effeito parecem estes meus creados,
e cortezãos moscas, bichos, toupeiras, ratos e
aranhas? D. Naõ ha duvida, que assim me parecem,
porque na verdade o saõ.
Example
arrenego de quantos
sophistas houve em Tiro, Smirna, Pergam, Epheso,
Larisso, Assiria, Bithinia, Sidonia, Cilicia,
Carthago, e Athenas, juntamente com toda a mentiroza
Grecia, que todas estas foraõ patrias dos Sophistas
antigos, e se houvesse de referir as dos modernos
nam poderiam caber em hum grande Calepino.
Selfportrait
Eu naõ ando com o pescosso torto à Beata,
nem trago a barba penteada como cauda de Andorinha:
Vedes as minhas mãos, que naõ tem unhas de Grifo;
porque só me valho dos dentes para dar alguma
mordedela no vicio, mas naõ das unhas para rapinar o
ouro, e a prata, nem as bolças alheas. Olhai bem
para mim desde a cabeça atè os pès, e vereis como
sou pobre, e disto podereis logo inferir que sou
Filosofo professor da verdade, a qual anda nua da
mesma sorte, que anda a verdadeira Filosofia, porque
cada hum lhe arranca hum pedaço de vestido.
Selfportrait
Isto que vez he misteriozo. Eu sou o primeiro
Filosofo, que uzou disto; naõ para me reparar do
frio, porque para me instruir no sofrimento muitas
vezes me exponho à neve;
Heteroportrait
Os que
vos assistem saõ como moscas, porque se andaõ pondo
sempre nos vossos ouvidos cheios de adulaçaõ, e vos
cercaõ, porque tendes muito daquelle mel, que move
os humores, e adoça a boca.
Heteroportrait
Por isso os judeos, que tudo entendem
pela casca, e naõ segundo o miolo, se apressaõ, e
trabalhaõ para chegar à terra prometida abundante de
leite, e de mel, porque se figuraõ ser
abundantissima de prata, de ouro, e assim fazem
ordinariamente os que assistem aos Principes, que
somente os seguem pelo interesse, e convenciencia
propria, e naõ por amor.
Heteroportrait
saõ
estes taes bichos da seda, que sempre trabalhaõ com
a boca. Nascidos como estes bichos, de huma pequena
semente (porque ordinariamente saõ de
pequena consideraçaõ no seu principio) se alimentaõ
de folhas, isto he da verde esperança de subir:
tanto que estaõ gordos, vaõ subindo por huns ramos
muitos secos, à força de empurroens, e penetrantes
picaduras: quando se achaõ no alto principiaõ a
fabricar huma armadilha, ordindo invençoenes subtis,
e calumnias refinadas, em que por ultimo elles mesmo
cahem, e ficaõ prezos.
Heteroportrait
Saõ
toupeiras cegas naõ só porque naõ vem, mas porque
naõ querem ver aquella luz que alumia, e aclara o
homem interior: saõ toupeiras porque se nutrem da
terra, e porque nos mesmos affectos da terra vivem
sepultados, e nunca abrem os olhos da consideraçaõ
se naõ quando morrem.
Heteroportrait
A estes insectos naõ
muito semelhantes; porque ha muita quantidade de
ratos aonde ha mais abundancia, e se encontraõ com
mais frequencia, e por isso naõ faltaõ nos Palacios
dos Principes, onde tudo anda a rodo, porque toda a
natureza se dezentranha para lhe
offerecer as iguarias mais esplendidas, e saborozas,
saõ ratos, e ratos pessimos porque com a sua lingua
roem continuamente, e quando naõ tem em que roer,
roem no mesmo Principe. Saõ ratos porque como diz Textor, e vivem
ordinariamente de furto, e de rapina.
Citation/Motto
muribus magna est
dulcedo furandi