O Anonymo. Repartido pelas semanas, para divertimento e utilidade do publico: Num.°.3
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Level 1
N.°.3
Sobre a Escultura, ou Estatuaria.Level 2
Ja que principiei a falar das bellas
Artes intimando ao publico a sua utilidade, a sua necessidade, e
a estimaçaõ, e amor que a ellas devemos ter, he justo que acabe
esta materia, que me parece naõ deixa de ser recomendavel na
memoria dos homens. Faley da Arquitectura, e da Pintura, e cuido
q̃ mostrei, se naõ tudo, ao menos o q̃ bastava a respeito destas
duas Artes, rezervando para agora tratar da sua irman, ou
companheira a Esculptura, por ser igualmente necessaria para o
adorno do mundo politico. Nam faltará quem diga, q̃ pouca, ou
nenhua utilidade póde rezultar de hum discurso desta natureza,
mas será porque ou ignoram a utilidade desta illustre Arte, ou
porque se naõ querem instruir no conhecimento do util, e só lhe
agrada o que superficialmente os diverte sem
reflectir em qual deve ser a justa, e prudente diversam de hum
espirito polido. Estas instrucçoens naõ tam para provocar o
rizo, sam sim para excitar a reflexam; sam para introduzir a
substancia, e naõ para dar lugar aos accidentes. Se á mais tempo
tivesse o publico o socorro destes discursos, e os fizesse
familiares, talvez que o commum da Naçam se achasse mais bem
instruido em tudo o que póde dizer respeito à vida civil, porque
esta liçam naõ deixa certamente de ser util a todo o genero de
pessoas, exceptuando os doutos porque estes a nam necessitam; e
como se pódem animar os genios para com fervor se aplicarem a
ser excellentes em qualquer arte se ignoram as conveniencias, e
a grande estimaçaõ que ellas lhe podem comunicar? o dezejo da
gloria he quasi innato em todas as creaturas racionaes, e como o
commum ignora os principios, e meyos proporcionados para a
adquirir em suas respectivas qualidades, e juntamente quaes
sejam as ventagens de huma arte, nam se podem applicar a ella
com fervor nam tendo este conhecimento antecipado. Assim diga
cada hum o que quizer, que destas censuras naõ faço cazo,
satisfaço-me sim que os homens doutos, e inteligentes aprovem
este trabalho porque só estes sam para mim os veneraveis
censores que me devem animar, ou dezanimar. He tam recomendavel,
e excellente a Arte de Esculptura, que bem se lhe póde dar o
nome da immortal, e he quasi impossivel mostrar com palavras
qual seja a sua utilidade. Esta he aquella Arte, que faz tam
dilatada, e permanente a nossa breve, a caduca vida, que os
homens pelo beneficio das Estatuas nam sómente renacem a huma
nova vida, mas de certo modo resucitam para viver eternamente:
utilidade que já Tertuliano reconheceu no seu tempo dizendo, que
todos aquelles a quem se dedicavam Estatuas conseguiam huma
duraçam eterna, e que de alguma sorte se revocavaõ para a vida.
Ainda que esta reposta he hum grande documento para a
moral, pelo muito que ella nos instrue para o sofrimento, ainda
ha outra que melhor nos instrue para a emulaçaõ da gloria, ainda
que nacida do mesmo principio. Nem
só Cesar se vio este effeito, mas Tem voz, e falam tambem os simulacros; e para e ouvir a
voz de hum marmore basta que hum animo nobre, e generozo olhe para elle com reffexam. Muitos entendem que Roma
deveu principalmente à Arte da Esculptura toda a gloria dos seus
mais invictos, e mais celebres Cidadãos; porque
a gloria, e a utilidade de tam grandes
emprezas se deveu á Arte da Esculptura; pois só a ambiçam da
honra daquella Estatua que o Senado erigia aos homens valerosos,
e illustres bastou para dezafiar taõ valerosamente a morte,
Curcio no precipicio, Murcio no fogo, e Oracio no rio, como
escreve hum historiador antigo. A imitaçaõ das armas reconhecem
tambem as letras, das Estatuas o seu augmento. Animaram-se para
o estudo, e para a virtude os Romanos, vendo que nam só aos seus
Cidadãos, mas ainda so Estrangeiro Ermodoro interprete das leys,
erigio o Senado Estatuas: Mas deixando
de parte os leterados, e os Heroes; ainda dos mesmos marmores,
por beneficio desta Arte da Esculptura, se pòde considerar a
favor dos Monarcas huma mayor utilidade. Ordinariamente vivem
quasi todos os povos muito satisfeitos debaixo do dominio de
algum Soberano; mas a huns, e outros sempre molesta
e desconçola hum certo pezar; os subditos cheyos de amor se
afligem, porque tendo dado o imperio sobre si mesmos nam tem
mais que offerecer ao seu amado Principe: o Principe porque
colocado no auge de toda a grandeza, tem a infelicidade, de que
lhe naõ resta mais que esperar: mas a Esculptura entre as suas
utilidades achou o excellente modo de desterrar toda esta
afliçam aos Monarcas, ou fundindo-se nos bronzes, ou ao vivo, ou
ao defunto Principe huma immortal Estatua de honra, acham-se os
subditos depois da inteira dadiva de si mesmos, no estado de
augmentar a mesma dadiva; com o que fica tambem ao Principe
ainda a esperança. álem da sua sublime condiçaõ a eternidade da
gloria. Por todas estas utilidades naõ pòdem deixar
os homens de confessar muito que saõ devedores a estas
utilissimas artes; e muito mais lhe devem à porporçaõ do muito,
que saõ necessarias; pois sem ellas ou viviriam como brutos, ou
de nenhum modo poderiam viver no conceito de Tullio: E na verdade parece que he;
porque se considerarmos, que depois que o nosso
primeiro Pay perdeu com a innocencia a morada do Paraizo
terrestre, expostos os homens à inclemencia das Estaçoens da
mesma sorte, que as Arvores no meyo dos campos, naõ foi sómente
util, mas ainda necessario o soccorro, e uso de taõ bellas
Artes. Nam tendo o homem outro tecto mais, que o Ceo, para se
reparar das infestas nuvens, que se desfaziaõ em chuva, e dos
intensos ardores do Sol, recorreu o humano engenho a huma
provida Arquitectura, principiando com os ramos das Arvores, e
com o lodo a fabricar hũ retiro servindolhe de modelo o
industrioso ninho das Andorinhas; depois para melhor comodo das
suas familias, pouco a pouco principiou a unir huma cabana com
outra, servindolhe de exemplo os favos das engenhozas abelhas;
atè q̃ considerando nas entranhas dos montes, materia mais
permamente, principiàraõ a valer-se das pedras; e multiplicaram
os edificios; unindo-se os edificios, pela necessidade, que huns
temos dos outros, se veyo a formar a vezinhança de habitaçoens,
e de habitadores a que se chamàraõ Cidades. Continou a
industrioza necessidade da Arquitectura pela necessaria defeza
das mesmas Cidades, formando-se os baluartes, e as Torres: pela
necessidade do commercio se edificáraõ sobre os rios muitas
pontes; e muito mais necessariamente para que a terra tivesse
melhor communicaçaõ com o Ceo se levantáram os Templos.
Finalmente aparecendo no Theatro do Mundo as outras duas Artes,
ou companheiras, ou irmans dentor, e fóra dos Templos se puzeraõ
as imagens pintadas, e esculpidas; naõ só pelas referidas
utilidades, e para excitar mais facilmente os affectos dos
coraçoen; mas tambem pela necessidade mais distinta de tantos
surdos, de tantos mudos, e de tantos ignorantes, que nunca
chegariaõ a perceber os Mysterios da Religiaõ, e a necessaria
historia das cousas palladas se a Pintura, e a Escultura com as
suas obras assim nas cazas; como nos Templos naõ
tivessem doutrinado a memoria, e àvista; porque as Pinturas, e
as Estatuas naõ sam outra cousa mais, que tantos livros
summamente necessarios para o infinito numero dos que naõ sabem
ler. Com tudo isto naõ faltou quem dissesse q̃ todas estas artes
foraõ introduzidas ou por hum divertimẽto inutil, ou pela
vaidade de hũ dispendio superfluo; Em todos os seculos tanto modernos, como antigos se
conheceu naõ só o gosto, mas tambem a utilidade, e necessidade
destas bellas Artes; e por isso todos os Povos, todas as
Republicas, todo os Principes, e todos os Monarcas as estimam
sempre como dignas do seu patronicio.
ley
que reconhecendo se naõ ser cruel, mas sim util, a publicou
tambem
Example
O Grande Filosofo Diogenes nam
menos divertido que sabio achou huma estranha utilidade nos
marmores esculpidos; pelo que ordinariamente se achava nos
sumptuozos Porticos de Athenas fazendo petiçoens, e
conservando com as Estatuas q̃ nelles estavam; alguns lhe
perguntavam que esperava tirar daquellas frias, e mudas
pedras, como quem se fazia sem familiar, mas engenhozamente
respondia, tiro a utilidade de me acostumar a sofrer quando
pede me acostumar a sofrer quando peço alguma couza a
alguem, e me nam responde, ou nada me concede do que peço.
Example
Passava Julio Cesar Questor para Espanha, e chegando a Cadiz
vio no Tempolo de Ercules a Estatua de Alexandre, e
voltando-se para aquelle mudo marmore se poz com elle e
falar mais com os suspiros, que com as palavras, e
perguntando pela razam respondeo naõ como Diogenes, mas sim
como Augusto, que se afligia da sua demaziada froxidam, por
nam ter feito couza digna de memoria até a idade emque
aquelle grande Eroe jà tinha subjugado huma grande parte do
mundo. Foi aquella pedra capas de lançar vigorozas faiscas,
que acenderam no coraçam do generozo Cesar multiplicadas
lavaredas de honra, e com a espada nam sómente igualou mas
com dizem muitos, que excedeo ao mesmo Alexandre.
Example
Salustio refere que o mesmo sucedeu a Q. Maximo, e P.
Scipiam; pelo que nam sam mudas, e inuteis, como se persuade
o vulgo, as Estatuas dos Enep: assim o disse Ovidio:
Citation/Motto
Crede mihi plus est, quam quod
videatur Imago.
Example
se Mucio Suvola conservou no meyo
das chamas immovel o seu generoso braço:
Example
se Curcio montado no seu cavalo se
percipitou intrepido nas profundidades de hum volcano para
livrar a sua Patria;
Example
se Oracio sobre huma ponte se
oppoz a hum exercito, e formou do seu peito escudo a toda
huma Cidade;
Example
afervorou os immortaes sequazes das Muzas a consideraçaõ de
que Arcadio, e Onorio Imperadores mandaram levantar no meyo
da Praça o simulacro de Claudiano; afoitaram-se os Oradores
com a reflexam de que o povo Romano expoz ao publico huma
illustre Estatua a hum celebre Orador de Athenas com esta
tam nobre, como gloriosa inscripçaõ: R. R. R. P.
que quer dizer: Roma Rainha das cousas mandou colocar esta
estatua a Proerefio Rey da eloquencia.
Citation/Motto
Proeresio Regi eloquentiae
Example
Assim remediou o Povo
Romano o seu pezar para com o seu optimo Principe Marco
Aurelio Antonio a quem erigio aquella famoza Estatua
Equestre, eterno monumento da sua gloria. Com tam illustres
utilidades da Estatuaria, a beneficio de cujas excellentes
obras despertaõ as letras, e as Armas, e por quem vivem
contentes da sua sorte os Povos, e os Reys, naõ pòde causar
admiraçaõ se Grecia sómente em huma de suas Cidades contava
mais de setecentas Estatuas; e Roma para se fazer mais
gloriosa erigio tantas, que diz Frigelio, que quasi se nam
podiaõ contar, o que deu motivo para certo Author deixar
escrito, que Roma tinha dous povos hum de homens, outro de
Estatuas.
Citation/Motto
Artes fine quibus vita omnino
nulla esse potuisset.
Example
mas o grande Botero, q̃ buscou muito as raizes da razaõ do
Estado, diz quanto aos magnificos, e sumptuosos edificios,
q̃ às Respublicas, e aos Monarcas he muitas vezes
necessario, ainda que á custa de grande dispendio, emprender
obras magnificas, e sumptuosas, à imitaçaõ do Propileo de
Pericles, e do Faro do Ptolomeu, quando naõ seja por outro
principio mais, que para empregar, e alimentar, como ensina
Plataõ, o povo ociozo, e a plebe faminta, evitando com isto
algumas funestas consequencias a que estaõ sugeitos os
homens, q̃ jazem sepultados entre o ocio, e a necessidade.
Example
Os Indios dividos em sette Tribus, affináraõ para
as Artes liberaes o quarto lugar, e naõ sómẽte as fizeraõ
izentas do tributo, como diz Diodoro, mas tembem as elevaraõ
às mayores honras.
Example
Amaso Rey dos Egypcios, naõ
sómente promoveo ao seu conselho estas bellas Artes, mas
obrigou tambem toda a mocidade do Egypto a que aprendesse
alguma dellas debaxo de rigoroza pena da morte;
Example
Solon em beneficio dos
seus Athenienses, e em pouco tempo se vio Athenas glorioso
Palacio em que rezidiam todas as illustres ciencias, e
nobres Artes; e se os nossos Nacionaes naõ com
o rigor da ley, mas com o amor da virtude quizer
voluntariamente imitar aquelle povo, bem pòdem esperar que
delles se diga o mesmo, que dos Athanienses se acha escrito,
que nenhuma virtude era taõ bella em si mesmo, que com os
seus estudos, e com a sua aplicaçam às boas Artes a nam
fizessem brilhar muito mais os Cidadãos de Athenas.