Citation: Anónimo (Bento Morganti) (Ed.): "Num.°.1", in: O Anonymo. Repartido pelas semanas, para divertimento e utilidade do publico, Vol.2\001 (1753), pp. 1-9, edited in: Ertler, Klaus-Dieter / Fernández, Hans (Ed.): The "Spectators" in the international context. Digital Edition, Graz 2011- . hdl.handle.net/11471/513.20.4503 [last accessed: ].


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N.°.1

Doentes imaginarios.

O primeiro do Anno de 1753.

Level 2► General account► Achava-me hum dia destes tomando o meu costumado divertimento de gozar da liberdade do sitio, vendo quem passava pela estrada, porque neste tempo principia a concorrer muita gente para visitar hum veneravel Santuario de huma Imagem milagroza; quando se chega a mim hum homem de boa presença; mas muito mal vestido, e cheirava muito a pobre nam por nacimento, mas por casualidade, pedindo-me se o queria hospedar aquella noute para na manham seguinte cõtinuar a sua romaria; o aspecto [2] nam sei que occulta virtude mostrava, que me persuadi nam perderia eu muito tempo na sua companhia; respondilhe cortez, que de muito boa vontade lhe daria a minha caza, ao q̃ elle correspõdeu agradecido; em quanto se faziam horas ficamos conversando no mesmo sitio, e faltando de huma cousa em outra viemos a parar na efficacia com que muitos pertendem conservar a saude, e augmentar a vida, ainda q̃ seja à custa de morrer de fome, fazendo-se mais austeros, que hom Anacoreta de vida mais exemplar. Revestio o tal homem esta sua pratica de cousas tam galantes, que nam sendo eu demasiadamente alegre, por muitas vezes soltei o rizo, e por ultimo confirmou este dezejo da saude com a prova de hum homem de distinçam, que conheceo na Corte, e era Ministro de Toga em certo Tribunal; que de tal sorte se entregou à liçam dos livros de Medecina, e a especular os muitos tratados, que ha de conservar a vida, e a saude, que atè com o receyo de que os boticarios lhe falcificassem os remedios, fez provimento de huma boa noticia, e nam fazia mais do que se lhe doia a cabeça, agarrava-se logo a hum daquelles Alfarrabios buscava a queixa, via o remedio, passava para a botica, fazia com a sua diligencia o remedio, dava com elle em baxo, e ficava muito descançado; punha-se de dieta, mascava duas ervinhas, ou hũ par de ameixas, e pela manhan se levantava, dizendo, que estava melhor, e que por sua industria se livrara de huma doença. Finalmente era tam exacto das regras de conservar a saude, que jà andava morrendo em pè, pàlido, magro, e fraco, atè que sem se achar nem melhor, nem peor morreo de repente sem saber de que. Alguma [3] imaginaçam certamente o accometeo de que morria, e foi-se como hum passarinho. ◀General account Acabado este exemplo, e outros desta mesma qualidade, disse eu; Dialogue► ora jà, que V.m. he tam divertido, e que me faz merce hoje da sua companhia, façame a graça de ver esse papel de hum amigo meu, que he no que me occupo neste sitio e diga-me o que entende, e o que se pòde dizer sobre isto? ◀Dialogue Abrimos ambos o papel, e achamos que continha este padeço de verso.

Citation/Motto► ——— Aegrescitque medendo.

Virg. Aeueid.liv.xii. vers.46 ◀Citation/Motto

Puzemo-nos com grande aplicaçam para o entendermos, atè q̃ depois de corrermos a Prozodia, e Calepi-nos das melhores edições achamos que rigorosamente dizia, Citation/Motto► Que o mal se augmenta quando se quer curar. ◀Citation/Motto Dialogue► E agora como havemos de fazer isto, lhe disse eu? Que heide mandar ao meu amigo sobre isto? O bom hospede que gastava muito bom humor respondeu promptamente, que me nam desse cuidado; porque elle entendia, que nam podia aplicarse melhor, que aos enfermos imaginarios da mesma especie dos que assima ficam referidos, e que para encher hum discurso sobre isto bastava huma carta que elle por curiozidade trazia comsigo, e copiàra de hum livro Inglez, e que della sem mais outra alguma explicaçam se tirava o suficiente para confirmar esta especie de loucura que acomete ainda aos homens, que se persuadem tem bom juizo. ◀Dialogue Dizia a Carta.

Level 3► Letter/Letter to the editor► Senhor:

Selfportrait► Eu sou hum dos que se comprehendem nesta grande e fraca Tribu, que ordinariamente se chama dos Valetudinarios, e confesso que contrahi [4] este mao habito do corpo, ou para melhor dizer do espirito pelo estudo da Medicina. Desde que me apliquei à liçam dos Livros que della tratam sentì que se me alteravam os pulsos; sempre que lia a descripçam de huma enfermidade, me parecia logo que estava com ella. O doutissimo Tratado das Febres do Doutor Sydenham atirou comigo a huma febre lenta, que me nam deixou em todo o tempo que me empreguei na liçam desta excellente obra. Sobre isto me voltei para o estudo de diversos Authores, que escreveram da Phtisica, e logo entendi, e me capacitei que estava possuido desta enfermidade, porque me parecia que de cada vez mais hia emagrecendo, até que finalmente achando-me gordo, e bem nutrido, huma especie de vergonha de alguma sorte me sarou desta imaginaçam. Pouco tempo depois, me considerei attacado de todos os Symptomas da gotta, excepto as dores; mas disto farey com a liçam de hum tratado sobre a Pedra, escripto por hum author de grande engenho, que segundo a practica dos Medicos, acostumados a expullar hum mal com outro peor, medeo a Pedra, para me ver livre da gotta. Finalmente estudei tanto que adquiri huma complicaçam de enfermidades; mas depois de ter lido o excellente discurso de Sanctorio, que por acazo me cahio nas mãos, rezolvi seguir o seu methodo, e observar todas as regras, que apontei nos meus peculios com bastante cuidado. Todos os homens doutos sabem que este grande homem, para fazer melhor as suas experiencias, inventou hũa certa cadeira mathematica tam artificiozamente suspendida no ar, por certos engenhos, que nella se podia pezar tudo [5] como em humas balanças. Desta maneira sabia quantas onças de seu nutrimento se dissipavam pela transpiraçaõ, a quantidade que se convertia em substancia, e o que sahia pelas outras vias da natureza.

Depois de me prover de huma destas cadeiras, me acostumei a estudar, comer, beber, e dormir nella: de sorte que bem posso dizer que ha tres anos que estou vivendo em hum par de balanças. Seguindo o meu rigorozo calculo, tanto que estou em boa saude, pezo exactamente duzentos arrates; diminuo quasi hum depois de jejuar hum dia, e adquiro um quando tenho alguma occaziam de comer melhor: e assim a minha continua occupaçam he em ver como heide conservar sempre a balança igual entre estes dois arrates volateis da minha constitutiçam. Nos meus comeres ordinarios augmento o meu pezo atè duzentos arrates, e meyo; e se depois de jentar observo que me falta alguma couza bebo de vinho, ou como tanta quatitade de pam quanto he necessario para chegar a este pezo. Quando faço algum excesso por conta de algum convite, nunca augmento mais que o outro meyo arrate, cujo excesso faço por conta da minha saude todos os Domingos do anno. Quando depois de jentar me acho bem, e devidamente balançado, vou passear o que basta para transpirar o valor de cinco onças, e quatro escropolos. Se descubro pela minha cadeira, que cheguei a este ponto, pego me aos livros, e com o estudo dissipo tres onças e meya. Pelo que falta para completar o arrate nam me canso em fazer mais conta. Nunca me regulo sobre as horas de jentar, ou cear; mas se a minha cadeira me adverte, que o meu arrate [9] de nutrimento està acabado, disto concluo, que tenho fome, e a vou reparar com toda a deligencia. Nos dias de jejum particulares perco arratel, e meyo do meu justo pezo, e os solemnes muito bem me custam dous arrates.

A minha dose de sonno huma noite por outra, he huma quarta parte do arratel, com alguns graõs mais, ou menos; e se quando me levanto, acho que nam tenho consumido ainda este pezo vou completalo sobre a minha cadeira. Segundo hum calculo exacto do que perdi, ou ganhei o anno passado a respeito do pezo, que todos os dias assento em hum livro, acho que estou quasi com o mesmo pezo de duzents arrates; de sorte, que entendo, que em todo este intervallo de tempo nam tive deminuiçam na saude, que chegasse a huma onça. Mas com todos estes cuidados, e deligencias, soffrendo o excessivo trabalho de me andar pezando, e calculando todos os dias para me conservar em hum justo equilibrio, me acho em hum estado fraco, miseravel, e perdido. Estou palido, sempre com os pulsos desiguaes, e ameaçado de huma hydropesia. Pelo que peço a V.m. me queira admitir em o numero dos seus enfermos, e que me comunique algumas regras mais certas que estas, que atè agora tenho praticado, &c. ◀Selfportrait ◀Letter/Letter to the editor ◀Level 3

Assim, que ouvi ler esta carta, me lembrou logo hum Epitafio Italiano, que se achou sobre a sepultura de hum destes valetudinarios, para quem encaminho este discurso: e dizia. Citation/Motto► Eu acha-vame bem; mas por querer estar melhor estou aqui. Stavo bene, mà por star meglio, stò qui. ◀Citation/Motto O medo da [7] morte he muitas vezes mortal, e nos obriga a tomar certas medidas para conservar a vida, que ordinariamente concorrem muito para mais depressa se perder. Muitos historiadores fazem reflexam, de que muita mais gente morre em hũa fugida desordenada, do que em huma batalha bem disposta: e isto se pòde applicar a este grande numero de doentes imaginarios, que arruinaõ a sua propia constituiçam, pela quantidade de remedios, que tomam, e q̃ por escapar da morte cahem mais depressa nas suas garras. Esta pratica nam he sómente perigoza; nam he muito alhea de excellencia de huma creatura racional. Nam trabalhar em outra cousa mais, que na conservaçam da vida, como se fosse o unico fim que se propoem neste mundo; fazer todo o seu cabedal o cuidado da saude, nam se lembrar mais que dos remedios, e do regimen para ella, sam humas idèas tam baxas, e tam indignas de natureza humana, que hum espirito alguma cousa elevado estimaria antes morrer mil vezes, que sogeitarse a ellas. Alèm de que huma inquietaçam continua para conservar a vida, tira, e separa della todo o gosto, espalhando huma espessa nevoa sobre a cara da natureza, porque he impossivel experimentar alguma satisfaçaõ, ou contentamento algum, no logro de hũa cousa, que continuamente se està receando perderse a cada momento.

Isto como tudo nam he criminar, nem arguir os que tem hum legitimo cuidado da sua saude, antes muito pelo contrario, porque como a existencia do espirito, e a vigilancia para os negocios, dependem em muita parte de huma boa constituiçam, sempre he necessario algum cuidado para a cultivar, e entreter [8] Mas este cuidado a que nos obriga o sentido cõmum, a obrigaçam, e o instinto natural, nam deve causar medos chimericos, accessos de melencolia, nem doenças imaginarias, que ordinariamente acompanham sempre aos que poem mais cuidado em viver, que em regrar os seus costumes. Em huma palavra a boa conducta, e a reforma da vida deve ser o fim principal, a sua conservaçam, vem em accessorio.

A respeito deste valetudinario que governa a saude por onças, e por escropolos, e que em lugar se seguir o direito natural de comer, beber, dormir, e passear, se governa pelas ordenanças da sua cadeira referirei esta pequena, e bem sabida Fabula. Fabel► Jupiter, como dizem os Mythologicos, para recompensar a piedade de hum bom lavrador, prometeu de lhe conceder tudo quanto lhe pedisse. Nesta certeza pedio o lavrador, q̃ o q̃ queria era ter o tempo à sua disposiçam, e tanto, que alcançou o que pertendia, entrou a destribuir a chuva, a neve, e o Sol sobre suas terras conforme entendeu, que era precizo. Mas quando no fim do anno esperava ter huma boa colheita, achou que esta foi muito menor que a dos seus vizinhos; de sorte, que para nam ser elle mesmo a causa da sua ruina total; pedio a Jupiter que tomasse outra vez o cuidado do Mundo. ◀Fabel A applicaçam està manifesta, e nam necessita de mais. ◀Level 2 ◀Level 1