O Anonymo. Repartido pelas semanas, para divertimento e utilidade do publico: Num. 15

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N.°.15

O ultimo deste Anno de 1752.

As boas, ou màs qualidades dos que tem empregos publicos.

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Heteroportrait

Nam he cousa neste mundo que senam mova para algum fim, e este serà mais louvavel quanto mais recto, e licito. Todos os homens se devem empregar com efficacia a pôr em execuçam hum meyo proporcionado para excutarem hum fim gloriozo, e que sirva de credito, às suas fadigas; e nam pòde haver couza mais detestavel, e odioza que servir hum caminho honesto, para conduzir os homens para o vicio quando devia ser para a virtude. O fim de estudo, e da apliçam deve dirigirse mais à utilidade do publico do que à propria conveniencia; mas eu estou muito bem persuadido de que ha poucos homens de hum espirito, e animo generozo, que ponham todo o cuidado em se elevar a empregos grandes mais por buscarem o occaziam de ser uteis aos seus amigos, e às pessoas de merecimento, do que para procurarem para si mesmo as honras, e as riquezas. As melhores utilidades de hum emprego para hum homem honesto, sam os meyos que aquelle lhe comunica para poder fazer bem, e servir de utilidade aos outros. Os officiaes subalternos, ou os principaes membros dos que pussuem, e exercitam os primeiros cargos do Estado na qualidade de instrumentos pelos quaes os ultimos obram, tem ordinariamente muitas occazioens de exercitar e benevolencia, e a generozidade tanto de seu soperior, como a sua tambem. Quando o advertem do minimo interesse, ou da mais leve dependencia, rezidindo naquelles algum principio de virtude, a pobreza dos que a elle se chegam, ou delle se valem, tem o lugar de recomendaçam, e a justiça da cauza deve bastar para os obrigar ao favor. Hum homem desta tempera que se acha encarregado de negocios, chega a ser huma das grandes felicidades do Publico: protege a viuva e o orfam; assiste ao que se acha destituido de amizades; e aconselha os ignorantes: Nam regeita, nem recuza as pertençoens daquelle em quem falta a arte de as saber expor, e se nam exime da fazer hum bom officio a qualquer homem que nam tiver meyos de lho agradecer: finalmente ainda que em todos os seus procedimentos observe as regras da justiça, e da equidade, sempre acha mil occazioens para exercitar todo o genero de actos de generozidade, e compaxaõ. O que he de hum humor aspero, e genio duro, ou que tem alguma paxam que o faz insofrivel a todos os que a elle se chegam, he incapas de hum emprego desta natureza. Hum ar carregado, e hum semblante dezagradavel desconcerta as pessoas timidas, ou aquellas que sam cheas de modestia. O orgulhozo dezanima os que sam de baxa extracçaõ, e que certamente sam os que mais necessitam da sua assistencia. O impaciente nam quer ter o sofrimento de ouvir ao que o instrue do seu negocio. Hum subalterno com huma, ou muitas destas pessimas qualidades, he muitas vezes considerado como huma pessoa muito propria para desviar de seu superior os importunos; mas isto he huma especie de merecimento que nunca pode expiar a injustiça que disto ordinariamente rezulta. Ha mais outras duas qualidades viciozas que fazem hum homem incapaz de hum semelhante emprego.

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A primeira he huma expediçam lenta, e tarda, que o obriga a commeter hum numero infinito de crueldades ainda que sem intençam alguma de as commeter. Hum homem que serve o publico deve seguir com todo o rigor a maxima estabelecida para o procedimento ordinario da vida; isto he que nunca deve deixar para o dia seguinte o que pode fazer hoje. Se deixa de hum dia para outro dia aquillo que tem por obrigaçaõ executar promptamente, he injusto todo o tempo que se gasta nesta dilaçam. A brevidade com que se faz hum bom officio he muitas vezes tam util ao que o solecita, como o mesmo bom officio que se pertende. E huma palavra, se hum homem comparar os incovenientes, que outro sofre pelas suas dilaçoens, com frivolos motivos, que o animam, e as utilidades, que lhe pòdem resultar, certamente nunca ha de cair em hum defeito, que cauza de orninario hum prejuizo irreparavel à quelle que sobre elle descança, e a que poderia com pouco custo facilmente remediar.

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A outra qualidade viciosa em hum homem, que tem a seu cargo interesses publicos, he ser facil ao interesse, e à corrupçam. Tal he aquelle que debaxo de algum pretexto, que possa allegar, recebe mais do que lhe he devido, fóra dos emolumentos, que deve ter em razam do seu emprego. Costumam dar a este excesso o titulo de gratificaçam, e de mostras de reconhecimento, pela brevidade da expediçam, mas na verdade tudo isto nam he mais, que hum termo especioso debaiso do qual se esconde a corrupçam. Hum homem honesto, e de bem olharà sempre para esta pratica como injusta, e se ha de satifazer muito mais de huma mediocre fortuna adquirida com honra, que de hum gran cabedal onde a extorsam, e a rapina tiverem alguma parte.
Se todos satifazessem os seus empregos com esta rigoroza probidade, nam veriamos em todos os seculos, muitas pessoas acumular thesouros immensos, ainda que a sua habilidade, ea sua sciencia nam passe algumas vezes de ser muito commua, e rasteira. Eu me persuado, que esta corrupçam procede principalmente de se darem semelhantes empregos aos primeiros, que para elles se offerecerem, ou àquelles, que mostrarem ser sabios, e espertos, em lugar de se conferirem àquelles, que foram bem educados, e que se aplicaram sempre ao estudo, e à virtude. Tem-se observado hà muito tempo, que os Homens de Letras, que se empregam nos negocios publicos, passam com mais honra, que outros muitos do commum. A principal razam que se pòde allegar he (se me nam engano) porque hum homem, que empregou toda a sua mocidade na liçam dos livros, se costumou a ver, que a virtude he sempre louvada, e o vicio reprehendido. Tudo nos outros succede pelo contrario; porque hum homem, que passou toda a sua vida no mundo vio muitas vezes triunfar o vicio, dominar a virtude. A extoriam, a rapina, e à injustiça, que se caham cobertas de infamia nos livros, reluzem muitas vezes no mundo; ao mesmo tempo, que differentes qualidades, que os Authores celebram, como a generosidade, e candura, e o bom natural empobressem, e arruinam ordinariamente os homens. Humas e outras qualidades nam podem deixar de ter hum effeito proporcionado sobre os homens, cujas inclinaçoens, e principios sam igualmente, e viciosos. Empregando-se homens de letras capazes, e bem morigerados nos empregos publicos, póde ao menos resultar a conveniencia, de que a prosperidade serà para elles muito melhor, que para outros que nam tiverem estas circunstancias, e ao mesmo tempo conseguiremos todos o gosto de nam vermos tantas pessoas indignas elevadas tam depressa a humas fortunas enormes. Este beneficio ordinariamente se consegue pela boa, ou mà eleyçam, ou lentas informaçoens, que se buscam, porque ordinariamente costumam os homens louvar o que se louva, e nam o que na verdade he digno de louvor, e para se formar algum conceito basta muitas vezes, que a amizade, ou o interesse forme os elogios à ignorancia, e a outras pessimas qualidades, ficando postergada a virtude, e a sciencia, quando he destituida de apoyo. Para empregos publicos, e para determinar os interesses do commum nam basta ser Doutor;

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e esta refleixam fez graciosamente o Papa Paulo V. em huma occasiam, que havia de prover hum Magistrado, que se achava vago; entre os pretendentes foy hum ter audiencia, e allegava ser Doutor em Padua encorporado em Sorbona, e outra recola de graduaçoens, que quazi parsuadiam darselhe o emprego por força: mas o Papa, que jà tinha alguma noticia da sua Litteratura graciosamente lhe respondeu: Este emprego he para homem que for letterado, e nam para o que for Doutor, e assim dizeime se sois Doutor, ou Letterado, que he sobre que heide fundar a minha resoluçam?
Com o grao se nam adquire mais que o titulo, a Litteratura se qualifica com o estudo; o primeiro serve de honra, e o segundo he que dà o prestimo, e serventia.
Lisboa: Na Officina de Pedro Ferreira, Impressor da Augustissima Rainha Nossa Senhora.