Citazione bibliografica: Anónimo (Bento Morganti) (Ed.): "Num. 9", in: O Anonymo. Repartido pelas semanas, para divertimento e utilidade do publico, Vol.1\009 (1752), pp. 65-72, edito in: Ertler, Klaus-Dieter / Fernández, Hans (Ed.): Gli "Spectators" nel contesto internazionale. Edizione digitale, Graz 2011- . hdl.handle.net/11471/513.20.4496 [consultato il: ].


Livello 1►

N.° 9.

Livello 2► Como vim para este sitio tratar da minha saude, cuido sómente em me divertir, por me achar jà cançado de trabalhar; pelo que varias tardes pego no meu bordam, e vou correr algũas aldeas, que me ficam nestas vezinhanças, aonde sempre de ordinario encontro motivos para me divertir, e para discorrer. Racconto generale► Entre as cousas, que se offerecem à minha especulaçam, topei hontem huma, sobre que me demorei mais do ordinario. Passando por huma rua mais principal do primeiro lugar a que cheguei, ouvi huma gritaria domestica, e para observar o que seria aquella al-[66]gazarra, fiz que tomava tabaco, e que estava cançado para disfarçar a curiosidade, e com hum affectado descuido, me sentei no degrao da porta, mas com toda esta diligencia nam pude perceber mais, do q̃ dizer hum: Livello 3► Jà lhe disse que nam queria, que fosse a essa parte, e como o tenho assim dito, quero que assim seja; bem sei, que nam ha nada de mal, mas haja, ou nam haja, basta para ser mao ateimar contra o que eu quero; Outra dizia: Diga o que quizer porque hei de ir, e quero divertirme, pois meu genio he nam estar em caza, e sempre fiz o que queria, agora nam quero, que vosse me prenda, ◀Livello 3 e assim foram continuando as razoens de huma parte, e da outra, mas a concluzam era, quero, e nam quero, atè que por ultimo o nam quero delle cedeo ao ultimo quero della, de sorte, que entendi levou a sua avante, e elle nam abrio mais a boca. Como ouvi tudo serenado, continuei o meu caminho, e fui parar a caza de hum dos meus conhecidos que morava na mesma Rua, e conteilhe o que tinha passado. Ouvio o tal a relaçam, desfexou com huma grande rizada, e disse; Dialogo► isso amigo jà nam causa admiraçam porque he todos os dias, e eu nam vi mulher de condiçam mais ardente, nem mais voluntaria do que essa, assim como nam tenho encontrado marido mais docil, nem mais prudente demaziadamente como he esse homem, o qual entendo, que em morrendo vai direito para o ceo, porque jà neste mundo tem tido o seu purgatorio, e muito bom pelo que tem sofrido àquella mulher, porque nam pòde haver no mundo outra semelhante tam feita de sua [67] vontade, pois o que quer, quer sem mais reflexam alguma, se pòde, ou nam pòde ser; se he, ou nam conveniente; e se lhe fica bem, ou mal qualquer idèa, que concebe, e que por capricho quer pôr em execuçam, e assim poucos dias se passam, que nam haja naquella caza hum laberintho, de dize tu, direi eu, e o peor he, que tem huma osga torrada de huma creada, que tudo isto lhe aconselha, e lhe facilita outras idèas tam boas como os seus narizes; tem tomando tanto vigor o seu atrevimento, que nam tem duvida a falar mais alto do que a ama, e o bom do marido sofre mais este contrapezo, sem que a faça pôr em equilibrio aumentandoselhe a dose com hum bom arroxo, e depois fazerlhe cheirar o meyo da rua: mas tudo sofre por ser do agrado da mulher, e ainda depois diz, que he muito boa creada. ◀Dialogo ◀Racconto generale

Ao referirme o amigo ser costume na mulher aquelle modo, e que naquella caza parece que se tinham confundido as obrigaçoens de ambos, porq̃ a mulher he que tinha toda a liberdade para deliberar, e o homem toda a sogeiçam para obedecer, lembreime de duas cousas, Exemplum► huma foi a estampa do mundo às avessas, que se vende debaxo dos Arcos do Rocio, em que se vê pintado hum cazal de marido, e mulher, esta esgrimindo a espada no meyo da rua, e o homem fiando em huma roca, e pensando os filhos; ◀Exemplum Exemplum► a outra foi, o que succedeu em certo sitio desta Cidade, onde morava hum homem, e se me nam engano parece, que ouvi dizer, era Barbeiro; era este cazado com huma mulher do mesmo natural como [68] a que assima digo; e sempre andava a caza revolta por conta do seu mao genio: o bom do marido tudo sofria, ou porque o seu genio era comedido, e nam queria contrastar com os despropositos da molher, ou porque tinha medo della, que he o mais certo, e destes nam faltam, atè que hum dia, nam sei o porque, vieram de palavras a obras, e andou tudo em huma roda viva, e finalmente veyo o tal Barbeiro de hum tombo parar à porta da rua, depois de muito bem sacudido; achando se daquella sorte injuriado, para disfarçar a sua froxidam, e mostrar ao menos com as palavras o modo com que tinha rebatido as teimas, e os atrevimentos da mulher, disse como dezabfando: Dialogo► Assim he que se ensinam estas voluntarias,e levadas das suas opinioens; he para que saiba que esta caza cheira a homem, ◀Dialogo e na verdade assim era, pois do homem só havia o cheiro, porque a substancia estava jà delida com as consumiçoens que a mulher continuamente lhe dava por conta do seu mao genio. ◀Exemplum

Com a lembrança deste successo, e juntamente com o que tinha ouvido, nam pude deixar de considerar a verdade da sentença de Diogenes quando respondeu a hum seu amigo, perguntandolhe em que tempo havia cazar o homem.

Citazione/Motto► Juvenibus nondum; senibus verò nunquam
Laert.in Diog.

Que quer dizer: para os mancebos ainda he cedo; ◀Citazione/Motto os velhos nunca; que he o mesmo que dizer, que em nenhum tempo; porque se os mancebos [69] devem esperar pelo tempo, o mesmo tempo os conduz ao estado da velhice, em que julga o Filosofo nam devem cazar os velhos. E quanto a mim acho, que teve muita razam, e eu tambem sem ser Diogenes dissera o mesmo.

Eteroritratto► A mulher na verdade he huma carga muito pezada, que mais se deve desviar, e fugir della, do que procurala com instancias repetidas, e deligencias cuidodozas, porque nam sei, que possa haver homem com discurso claro, que se incline tanto a buscar o mal com tanta ancia, e puxalo para caza com suas proprias mãos, principalmente no tempo presente, em que se tem o Matrimonio feito ambicioso, e traz comsigo para caza com o luxo a despeza, e com as despezas a que muitas vezes nam pòdem chegar as forças, o perigo; de que nascem ordinariamente mais discordias, que filhos. Alèm de que o homem que se caza, se he moço perde a liberdade, e se he velho perde o juizo: pois se a mulher he mais bonita de aspecto, que formoza de animo, he necessario ser o marido hum Argos para a guardar; e nem ainda bastaràõ ter cem olhos como Argos, se houver algum Mercurio, que faça correr muita prata, e muito ouro, pelo que fica certamente perdendo a liberdade, por lhe ser precizo todo o tempo para empregar nesta vigilancia. Se he fea como hum Demonio converte a caza em inferno, e muito peor se he rica, e trouxe para ella bom dote, porque entam, àlem do mais reyna a soberba, e assim como na outra predomina o desvanecimento, a vaidade.

[70] Se os homens separando a sua paxam que os inclina, e os move, considerassem bem que a mulher nam tem meyo algum; porque, ou he boa, ou mà; o u ama, ou aborrece; ou he avarenta, ou prodiga, e assim em todos os mais effeitos sempre propende, e cahe nos extremos, certamente me persuado, que haveria muito poucos, que tam vigorosamente se inclinassem a este estado; mas como a paxam domina, fica prezo o discurso, e só com a experiencia depois he que se eleva o arrependimento. Se todos levassem a consideraçam a que a mulher nam he outra causa mais, que o naufragio do homem, a tempestade de huma caza, impedimento do descanço; prizam da vida; danno continuado; guerra quotodiana; animal malicioso; e finalmente huma séra à ilharga do homem, pòde ser que nam chegassem tantos a lamentar o proprio danno, e a queixarse depois do mesmo que antes com facilidade podiam ter evitado. ◀Eteroritratto

Que cousa mais dura, que ouvir hum homem a cada instante proposiçoens importunas sugeridas pela vaidade? Conceitos ditados pelo luxo? Expressoens ideadas pela soberba? Determinaçoens proferidas pela vontade indiscreta? E leys absolutas promulgadas pelo abominavel oraculo do quero? E com tudo ha homens que desprezando os dictames da razam a tudo se sugeitam, só porque querem seguir o rumbo que lhes mostra ou a cegueira de hum amor quando moços, ou a ambiçam quando velhos, cazando indiferentes na qualidade do genio da molher; ou porque se persua-[71]dem, que o amor tem sempre os mesmos periodos, ou porque cuidam que o estado mudará a condiçam.

Nam me persuado, que entendam os leytores, que eu absolutamente me encaminho a declamar contra o estado dos cazados, porque eu sómente lembro as reflexoens que se devem fazer para deliberaçam sobre elle. Exemplum► Socrates aquelle grande Filosofo, pedindolhe hum mancebo contelho se devia ou nam cazar, lhe respondeu, que a cousa mais agradavel, mais honesta, e mais justa que pòde fazer o homem para satisfazer a Deos, á natureza, e à Patria, he cazar com huma mulher da sua mesma qualidade; ◀Exemplum e certo he que das desigualdades dos cazamentos nascem de ordinario consequencias terriveis, e pelo menos poucas vezes reyna entre os cazados a paz, porque quer sempre ser mais respeitado o excesso, atropellando as leys da obrigaçam mutuas a hum, e a outro. Eteroritratto► Alem disto deve a mulher ser bem nacida, e que tenham sido bons os principios da origem, e da educaçam; porque certamente nam pòde ter boa ley, quem nam teve boa educaçam; e a este intento dizem graciozamente os castelhanos Citazione/Motto► De rabo de puerco, nunca buen virote. ◀Citazione/Motto Cada rio tem em si as qualidades de seu nacimento; e todos os inxertos produzem os frutos mais da Arvore de que sam cortados, do que daquella a que se unem: e por isso deve a mulher ser mais virtuosa, que bonita, porque a virtude he a que deve ser a formosura formal, e nam material de huma mulher; pois esta nam consiste na bem dilinea-[72]da semetria do rostro, e na proporçam correspondente do corpo; mas sim na bem temperada armonia dos costumes, e no bem temperado dos affectos. Nam deve ser Bacharella, com a discriçam muito na superficie, mas sim sabia no fundo da sua consideraçam; isto he naõ ser affectada nas apparencias de prudente, mas sim prudente no intermo da sua propria consideraçam: Exemplum► nam como aquella que em Hieropolis se prezava de ser sibilla referindo, e interpretando Oraculos, e nam queria depois sogeitarse ao dominio do marido, porque entendia que era huma Minerva. ◀Exemplum Exemplum► E finalmente deve a molher ser muito semelhante a Angerona (q̃ a antiguidade fingio ser Deoza do silencio, a quem os Romanos sacrificavam no tempo que havia Lucrecias) muito mais sobria nos seus discursos,que na sua menza, cuidando muito em suavizar os ouvidos do marido com o favo da prudencia, e nam maltratalo com o agudo ferram da iracundia, tomando o exemplo da Raynha das Abelhas, que trabalhando como as outras o mel, nam escandaliza: ◀Exemplum e nam seja por ultimo Exemplum► Lara, a quem seja precizo resgarselhe a lingoa, para se lhe prohibirem os comercios com os Junos. ◀Exemplum Se com effeito se acharem na mulher estas circunstancias, ou juntas, ou pelo menos a mayor parte dellas, serà o cazamento feliz, suave, e descançado; mas sendo pelo contrario será terrivel, aborrecido, e laborioso; e seram quasi infaliveis as suas pessimas consequencias. ◀Eteroritratto ◀Livello 2 ◀Livello 1