Num. 9 Anónimo (Bento Morganti) Moralische Wochenschriften Klaus-Dieter Ertler Herausgeber Hans Fernández Herausgeber Elisabeth Hobisch Mitarbeiter Nicole Markof Mitarbeiter Pascal Striedner Mitarbeiter Sarah Lang Gerlinde Schneider Martina Scholger Johannes Stigler Gunter Vasold Datenmodellierung Applikationsentwicklung Institut für Romanistik, Universität Graz Zentrum für Informationsmodellierung, Universität Graz Graz 04.10.2018 o:mws.6989 Anónimo (Morganti, Bento): Primeira Collecçam dos Papeis Anonymos. Lisboa: Pedro Ferreira, 1752, 65-72 O Anonymo. Repartido pelas semanas, para divertimento e utilidade do publico 1 009 1752 Portugal Ebene 1 Ebene 2 Ebene 3 Ebene 4 Ebene 5 Ebene 6 Allgemeine Erzählung Selbstportrait Fremdportrait Dialog Allegorisches Erzählen Traumerzählung Fabelerzählung Satirisches Erzählen Exemplarisches Erzählen Utopische Erzählung Metatextualität Zitat/Motto Leserbrief Graz, Austria Portuguese Liebe Amore Love Amor Amour Amor Männerbild Immagine di Uomini Image of Men Imagen de Hombres Image de l'homme Imagem masculina Gesellschaftsstruktur Struttura della Società Structure of Society Estructura de la Sociedad Structure de la société Estrutura social Portugal -8.13057,39.6945

N.° 9.

Como vim para este sitio tratar da minha saude, cuido sómente em me divertir, por me achar jà cançado de trabalhar; pelo que varias tardes pego no meu bordam, e vou correr algũas aldeas, que me ficam nestas vezinhanças, aonde sempre de ordinario encontro motivos para me divertir, e para discorrer. Entre as cousas, que se offerecem à minha especulaçam, topei hontem huma, sobre que me demorei mais do ordinario. Passando por huma rua mais principal do primeiro lugar a que cheguei, ouvi huma gritaria domestica, e para observar o que seria aquella al-gazarra, fiz que tomava tabaco, e que estava cançado para disfarçar a curiosidade, e com hum affectado descuido, me sentei no degrao da porta, mas com toda esta diligencia nam pude perceber mais, do q̃ dizer hum: Jà lhe disse que nam queria, que fosse a essa parte, e como o tenho assim dito, quero que assim seja; bem sei, que nam ha nada de mal, mas haja, ou nam haja, basta para ser mao ateimar contra o que eu quero; Outra dizia: Diga o que quizer porque hei de ir, e quero divertirme, pois meu genio he nam estar em caza, e sempre fiz o que queria, agora nam quero, que vosse me prenda, e assim foram continuando as razoens de huma parte, e da outra, mas a concluzam era, quero, e nam quero, atè que por ultimo o nam quero delle cedeo ao ultimo quero della, de sorte, que entendi levou a sua avante, e elle nam abrio mais a boca. Como ouvi tudo serenado, continuei o meu caminho, e fui parar a caza de hum dos meus conhecidos que morava na mesma Rua, e conteilhe o que tinha passado. Ouvio o tal a relaçam, desfexou com huma grande rizada, e disse; isso amigo jà nam causa admiraçam porque he todos os dias, e eu nam vi mulher de condiçam mais ardente, nem mais voluntaria do que essa, assim como nam tenho encontrado marido mais docil, nem mais prudente demaziadamente como he esse homem, o qual entendo, que em morrendo vai direito para o ceo, porque jà neste mundo tem tido o seu purgatorio, e muito bom pelo que tem sofrido àquella mulher, porque nam pòde haver no mundo outra semelhante tam feita de sua vontade, pois o que quer, quer sem mais reflexam alguma, se pòde, ou nam pòde ser; se he, ou nam conveniente; e se lhe fica bem, ou mal qualquer idèa, que concebe, e que por capricho quer pôr em execuçam, e assim poucos dias se passam, que nam haja naquella caza hum laberintho, de dize tu, direi eu, e o peor he, que tem huma osga torrada de huma creada, que tudo isto lhe aconselha, e lhe facilita outras idèas tam boas como os seus narizes; tem tomando tanto vigor o seu atrevimento, que nam tem duvida a falar mais alto do que a ama, e o bom do marido sofre mais este contrapezo, sem que a faça pôr em equilibrio aumentandoselhe a dose com hum bom arroxo, e depois fazerlhe cheirar o meyo da rua: mas tudo sofre por ser do agrado da mulher, e ainda depois diz, que he muito boa creada.

Ao referirme o amigo ser costume na mulher aquelle modo, e que naquella caza parece que se tinham confundido as obrigaçoens de ambos, porq̃ a mulher he que tinha toda a liberdade para deliberar, e o homem toda a sogeiçam para obedecer, lembreime de duas cousas, huma foi a estampa do mundo às avessas, que se vende debaxo dos Arcos do Rocio, em que se vê pintado hum cazal de marido, e mulher, esta esgrimindo a espada no meyo da rua, e o homem fiando em huma roca, e pensando os filhos; a outra foi, o que succedeu em certo sitio desta Cidade, onde morava hum homem, e se me nam engano parece, que ouvi dizer, era Barbeiro; era este cazado com huma mulher do mesmo natural como a que assima digo; e sempre andava a caza revolta por conta do seu mao genio: o bom do marido tudo sofria, ou porque o seu genio era comedido, e nam queria contrastar com os despropositos da molher, ou porque tinha medo della, que he o mais certo, e destes nam faltam, atè que hum dia, nam sei o porque, vieram de palavras a obras, e andou tudo em huma roda viva, e finalmente veyo o tal Barbeiro de hum tombo parar à porta da rua, depois de muito bem sacudido; achando se daquella sorte injuriado, para disfarçar a sua froxidam, e mostrar ao menos com as palavras o modo com que tinha rebatido as teimas, e os atrevimentos da mulher, disse como dezabfando: Assim he que se ensinam estas voluntarias,e levadas das suas opinioens; he para que saiba que esta caza cheira a homem, e na verdade assim era, pois do homem só havia o cheiro, porque a substancia estava jà delida com as consumiçoens que a mulher continuamente lhe dava por conta do seu mao genio.

Com a lembrança deste successo, e juntamente com o que tinha ouvido, nam pude deixar de considerar a verdade da sentença de Diogenes quando respondeu a hum seu amigo, perguntandolhe em que tempo havia cazar o homem.

Juvenibus nondum; senibus verò nunquamLaert.in Diog.

Que quer dizer: para os mancebos ainda he cedo; os velhos nunca; que he o mesmo que dizer, que em nenhum tempo; porque se os mancebos devem esperar pelo tempo, o mesmo tempo os conduz ao estado da velhice, em que julga o Filosofo nam devem cazar os velhos. E quanto a mim acho, que teve muita razam, e eu tambem sem ser Diogenes dissera o mesmo.

A mulher na verdade he huma carga muito pezada, que mais se deve desviar, e fugir della, do que procurala com instancias repetidas, e deligencias cuidodozas, porque nam sei, que possa haver homem com discurso claro, que se incline tanto a buscar o mal com tanta ancia, e puxalo para caza com suas proprias mãos, principalmente no tempo presente, em que se tem o Matrimonio feito ambicioso, e traz comsigo para caza com o luxo a despeza, e com as despezas a que muitas vezes nam pòdem chegar as forças, o perigo; de que nascem ordinariamente mais discordias, que filhos. Alèm de que o homem que se caza, se he moço perde a liberdade, e se he velho perde o juizo: pois se a mulher he mais bonita de aspecto, que formoza de animo, he necessario ser o marido hum Argos para a guardar; e nem ainda bastaràõ ter cem olhos como Argos, se houver algum Mercurio, que faça correr muita prata, e muito ouro, pelo que fica certamente perdendo a liberdade, por lhe ser precizo todo o tempo para empregar nesta vigilancia. Se he fea como hum Demonio converte a caza em inferno, e muito peor se he rica, e trouxe para ella bom dote, porque entam, àlem do mais reyna a soberba, e assim como na outra predomina o desvanecimento, a vaidade.

Se os homens separando a sua paxam que os inclina, e os move, considerassem bem que a mulher nam tem meyo algum; porque, ou he boa, ou mà; o u ama, ou aborrece; ou he avarenta, ou prodiga, e assim em todos os mais effeitos sempre propende, e cahe nos extremos, certamente me persuado, que haveria muito poucos, que tam vigorosamente se inclinassem a este estado; mas como a paxam domina, fica prezo o discurso, e só com a experiencia depois he que se eleva o arrependimento. Se todos levassem a consideraçam a que a mulher nam he outra causa mais, que o naufragio do homem, a tempestade de huma caza, impedimento do descanço; prizam da vida; danno continuado; guerra quotodiana; animal malicioso; e finalmente huma séra à ilharga do homem, pòde ser que nam chegassem tantos a lamentar o proprio danno, e a queixarse depois do mesmo que antes com facilidade podiam ter evitado.

Que cousa mais dura, que ouvir hum homem a cada instante proposiçoens importunas sugeridas pela vaidade? Conceitos ditados pelo luxo? Expressoens ideadas pela soberba? Determinaçoens proferidas pela vontade indiscreta? E leys absolutas promulgadas pelo abominavel oraculo do quero? E com tudo ha homens que desprezando os dictames da razam a tudo se sugeitam, só porque querem seguir o rumbo que lhes mostra ou a cegueira de hum amor quando moços, ou a ambiçam quando velhos, cazando indiferentes na qualidade do genio da molher; ou porque se persua-dem, que o amor tem sempre os mesmos periodos, ou porque cuidam que o estado mudará a condiçam.

Nam me persuado, que entendam os leytores, que eu absolutamente me encaminho a declamar contra o estado dos cazados, porque eu sómente lembro as reflexoens que se devem fazer para deliberaçam sobre elle. Socrates aquelle grande Filosofo, pedindolhe hum mancebo contelho se devia ou nam cazar, lhe respondeu, que a cousa mais agradavel, mais honesta, e mais justa que pòde fazer o homem para satisfazer a Deos, á natureza, e à Patria, he cazar com huma mulher da sua mesma qualidade; e certo he que das desigualdades dos cazamentos nascem de ordinario consequencias terriveis, e pelo menos poucas vezes reyna entre os cazados a paz, porque quer sempre ser mais respeitado o excesso, atropellando as leys da obrigaçam mutuas a hum, e a outro. Alem disto deve a mulher ser bem nacida, e que tenham sido bons os principios da origem, e da educaçam; porque certamente nam pòde ter boa ley, quem nam teve boa educaçam; e a este intento dizem graciozamente os castelhanos De rabo de puerco, nunca buen virote. Cada rio tem em si as qualidades de seu nacimento; e todos os inxertos produzem os frutos mais da Arvore de que sam cortados, do que daquella a que se unem: e por isso deve a mulher ser mais virtuosa, que bonita, porque a virtude he a que deve ser a formosura formal, e nam material de huma mulher; pois esta nam consiste na bem dilinea-da semetria do rostro, e na proporçam correspondente do corpo; mas sim na bem temperada armonia dos costumes, e no bem temperado dos affectos. Nam deve ser Bacharella, com a discriçam muito na superficie, mas sim sabia no fundo da sua consideraçam; isto he naõ ser affectada nas apparencias de prudente, mas sim prudente no intermo da sua propria consideraçam: nam como aquella que em Hieropolis se prezava de ser sibilla referindo, e interpretando Oraculos, e nam queria depois sogeitarse ao dominio do marido, porque entendia que era huma Minerva. E finalmente deve a molher ser muito semelhante a Angerona (q̃ a antiguidade fingio ser Deoza do silencio, a quem os Romanos sacrificavam no tempo que havia Lucrecias) muito mais sobria nos seus discursos,que na sua menza, cuidando muito em suavizar os ouvidos do marido com o favo da prudencia, e nam maltratalo com o agudo ferram da iracundia, tomando o exemplo da Raynha das Abelhas, que trabalhando como as outras o mel, nam escandaliza: e nam seja por ultimo Lara, a quem seja precizo resgarselhe a lingoa, para se lhe prohibirem os comercios com os Junos. Se com effeito se acharem na mulher estas circunstancias, ou juntas, ou pelo menos a mayor parte dellas, serà o cazamento feliz, suave, e descançado; mas sendo pelo contrario será terrivel, aborrecido, e laborioso; e seram quasi infaliveis as suas pessimas consequencias.

N.° 9. Como vim para este sitio tratar da minha saude, cuido sómente em me divertir, por me achar jà cançado de trabalhar; pelo que varias tardes pego no meu bordam, e vou correr algũas aldeas, que me ficam nestas vezinhanças, aonde sempre de ordinario encontro motivos para me divertir, e para discorrer. Entre as cousas, que se offerecem à minha especulaçam, topei hontem huma, sobre que me demorei mais do ordinario. Passando por huma rua mais principal do primeiro lugar a que cheguei, ouvi huma gritaria domestica, e para observar o que seria aquella al-gazarra, fiz que tomava tabaco, e que estava cançado para disfarçar a curiosidade, e com hum affectado descuido, me sentei no degrao da porta, mas com toda esta diligencia nam pude perceber mais, do q̃ dizer hum: Jà lhe disse que nam queria, que fosse a essa parte, e como o tenho assim dito, quero que assim seja; bem sei, que nam ha nada de mal, mas haja, ou nam haja, basta para ser mao ateimar contra o que eu quero; Outra dizia: Diga o que quizer porque hei de ir, e quero divertirme, pois meu genio he nam estar em caza, e sempre fiz o que queria, agora nam quero, que vosse me prenda, e assim foram continuando as razoens de huma parte, e da outra, mas a concluzam era, quero, e nam quero, atè que por ultimo o nam quero delle cedeo ao ultimo quero della, de sorte, que entendi levou a sua avante, e elle nam abrio mais a boca. Como ouvi tudo serenado, continuei o meu caminho, e fui parar a caza de hum dos meus conhecidos que morava na mesma Rua, e conteilhe o que tinha passado. Ouvio o tal a relaçam, desfexou com huma grande rizada, e disse; isso amigo jà nam causa admiraçam porque he todos os dias, e eu nam vi mulher de condiçam mais ardente, nem mais voluntaria do que essa, assim como nam tenho encontrado marido mais docil, nem mais prudente demaziadamente como he esse homem, o qual entendo, que em morrendo vai direito para o ceo, porque jà neste mundo tem tido o seu purgatorio, e muito bom pelo que tem sofrido àquella mulher, porque nam pòde haver no mundo outra semelhante tam feita de sua vontade, pois o que quer, quer sem mais reflexam alguma, se pòde, ou nam pòde ser; se he, ou nam conveniente; e se lhe fica bem, ou mal qualquer idèa, que concebe, e que por capricho quer pôr em execuçam, e assim poucos dias se passam, que nam haja naquella caza hum laberintho, de dize tu, direi eu, e o peor he, que tem huma osga torrada de huma creada, que tudo isto lhe aconselha, e lhe facilita outras idèas tam boas como os seus narizes; tem tomando tanto vigor o seu atrevimento, que nam tem duvida a falar mais alto do que a ama, e o bom do marido sofre mais este contrapezo, sem que a faça pôr em equilibrio aumentandoselhe a dose com hum bom arroxo, e depois fazerlhe cheirar o meyo da rua: mas tudo sofre por ser do agrado da mulher, e ainda depois diz, que he muito boa creada. Ao referirme o amigo ser costume na mulher aquelle modo, e que naquella caza parece que se tinham confundido as obrigaçoens de ambos, porq̃ a mulher he que tinha toda a liberdade para deliberar, e o homem toda a sogeiçam para obedecer, lembreime de duas cousas, huma foi a estampa do mundo às avessas, que se vende debaxo dos Arcos do Rocio, em que se vê pintado hum cazal de marido, e mulher, esta esgrimindo a espada no meyo da rua, e o homem fiando em huma roca, e pensando os filhos; a outra foi, o que succedeu em certo sitio desta Cidade, onde morava hum homem, e se me nam engano parece, que ouvi dizer, era Barbeiro; era este cazado com huma mulher do mesmo natural como a que assima digo; e sempre andava a caza revolta por conta do seu mao genio: o bom do marido tudo sofria, ou porque o seu genio era comedido, e nam queria contrastar com os despropositos da molher, ou porque tinha medo della, que he o mais certo, e destes nam faltam, atè que hum dia, nam sei o porque, vieram de palavras a obras, e andou tudo em huma roda viva, e finalmente veyo o tal Barbeiro de hum tombo parar à porta da rua, depois de muito bem sacudido; achando se daquella sorte injuriado, para disfarçar a sua froxidam, e mostrar ao menos com as palavras o modo com que tinha rebatido as teimas, e os atrevimentos da mulher, disse como dezabfando: Assim he que se ensinam estas voluntarias,e levadas das suas opinioens; he para que saiba que esta caza cheira a homem, e na verdade assim era, pois do homem só havia o cheiro, porque a substancia estava jà delida com as consumiçoens que a mulher continuamente lhe dava por conta do seu mao genio. Com a lembrança deste successo, e juntamente com o que tinha ouvido, nam pude deixar de considerar a verdade da sentença de Diogenes quando respondeu a hum seu amigo, perguntandolhe em que tempo havia cazar o homem. Juvenibus nondum; senibus verò nunquamLaert.in Diog. Que quer dizer: para os mancebos ainda he cedo; os velhos nunca; que he o mesmo que dizer, que em nenhum tempo; porque se os mancebos devem esperar pelo tempo, o mesmo tempo os conduz ao estado da velhice, em que julga o Filosofo nam devem cazar os velhos. E quanto a mim acho, que teve muita razam, e eu tambem sem ser Diogenes dissera o mesmo. A mulher na verdade he huma carga muito pezada, que mais se deve desviar, e fugir della, do que procurala com instancias repetidas, e deligencias cuidodozas, porque nam sei, que possa haver homem com discurso claro, que se incline tanto a buscar o mal com tanta ancia, e puxalo para caza com suas proprias mãos, principalmente no tempo presente, em que se tem o Matrimonio feito ambicioso, e traz comsigo para caza com o luxo a despeza, e com as despezas a que muitas vezes nam pòdem chegar as forças, o perigo; de que nascem ordinariamente mais discordias, que filhos. Alèm de que o homem que se caza, se he moço perde a liberdade, e se he velho perde o juizo: pois se a mulher he mais bonita de aspecto, que formoza de animo, he necessario ser o marido hum Argos para a guardar; e nem ainda bastaràõ ter cem olhos como Argos, se houver algum Mercurio, que faça correr muita prata, e muito ouro, pelo que fica certamente perdendo a liberdade, por lhe ser precizo todo o tempo para empregar nesta vigilancia. Se he fea como hum Demonio converte a caza em inferno, e muito peor se he rica, e trouxe para ella bom dote, porque entam, àlem do mais reyna a soberba, e assim como na outra predomina o desvanecimento, a vaidade. Se os homens separando a sua paxam que os inclina, e os move, considerassem bem que a mulher nam tem meyo algum; porque, ou he boa, ou mà; o u ama, ou aborrece; ou he avarenta, ou prodiga, e assim em todos os mais effeitos sempre propende, e cahe nos extremos, certamente me persuado, que haveria muito poucos, que tam vigorosamente se inclinassem a este estado; mas como a paxam domina, fica prezo o discurso, e só com a experiencia depois he que se eleva o arrependimento. Se todos levassem a consideraçam a que a mulher nam he outra causa mais, que o naufragio do homem, a tempestade de huma caza, impedimento do descanço; prizam da vida; danno continuado; guerra quotodiana; animal malicioso; e finalmente huma séra à ilharga do homem, pòde ser que nam chegassem tantos a lamentar o proprio danno, e a queixarse depois do mesmo que antes com facilidade podiam ter evitado. Que cousa mais dura, que ouvir hum homem a cada instante proposiçoens importunas sugeridas pela vaidade? Conceitos ditados pelo luxo? Expressoens ideadas pela soberba? Determinaçoens proferidas pela vontade indiscreta? E leys absolutas promulgadas pelo abominavel oraculo do quero? E com tudo ha homens que desprezando os dictames da razam a tudo se sugeitam, só porque querem seguir o rumbo que lhes mostra ou a cegueira de hum amor quando moços, ou a ambiçam quando velhos, cazando indiferentes na qualidade do genio da molher; ou porque se persua-dem, que o amor tem sempre os mesmos periodos, ou porque cuidam que o estado mudará a condiçam. Nam me persuado, que entendam os leytores, que eu absolutamente me encaminho a declamar contra o estado dos cazados, porque eu sómente lembro as reflexoens que se devem fazer para deliberaçam sobre elle. Socrates aquelle grande Filosofo, pedindolhe hum mancebo contelho se devia ou nam cazar, lhe respondeu, que a cousa mais agradavel, mais honesta, e mais justa que pòde fazer o homem para satisfazer a Deos, á natureza, e à Patria, he cazar com huma mulher da sua mesma qualidade; e certo he que das desigualdades dos cazamentos nascem de ordinario consequencias terriveis, e pelo menos poucas vezes reyna entre os cazados a paz, porque quer sempre ser mais respeitado o excesso, atropellando as leys da obrigaçam mutuas a hum, e a outro. Alem disto deve a mulher ser bem nacida, e que tenham sido bons os principios da origem, e da educaçam; porque certamente nam pòde ter boa ley, quem nam teve boa educaçam; e a este intento dizem graciozamente os castelhanos De rabo de puerco, nunca buen virote. Cada rio tem em si as qualidades de seu nacimento; e todos os inxertos produzem os frutos mais da Arvore de que sam cortados, do que daquella a que se unem: e por isso deve a mulher ser mais virtuosa, que bonita, porque a virtude he a que deve ser a formosura formal, e nam material de huma mulher; pois esta nam consiste na bem dilinea-da semetria do rostro, e na proporçam correspondente do corpo; mas sim na bem temperada armonia dos costumes, e no bem temperado dos affectos. Nam deve ser Bacharella, com a discriçam muito na superficie, mas sim sabia no fundo da sua consideraçam; isto he naõ ser affectada nas apparencias de prudente, mas sim prudente no intermo da sua propria consideraçam: nam como aquella que em Hieropolis se prezava de ser sibilla referindo, e interpretando Oraculos, e nam queria depois sogeitarse ao dominio do marido, porque entendia que era huma Minerva. E finalmente deve a molher ser muito semelhante a Angerona (q̃ a antiguidade fingio ser Deoza do silencio, a quem os Romanos sacrificavam no tempo que havia Lucrecias) muito mais sobria nos seus discursos,que na sua menza, cuidando muito em suavizar os ouvidos do marido com o favo da prudencia, e nam maltratalo com o agudo ferram da iracundia, tomando o exemplo da Raynha das Abelhas, que trabalhando como as outras o mel, nam escandaliza: e nam seja por ultimo Lara, a quem seja precizo resgarselhe a lingoa, para se lhe prohibirem os comercios com os Junos. Se com effeito se acharem na mulher estas circunstancias, ou juntas, ou pelo menos a mayor parte dellas, serà o cazamento feliz, suave, e descançado; mas sendo pelo contrario será terrivel, aborrecido, e laborioso; e seram quasi infaliveis as suas pessimas consequencias.