Cita bibliográfica: Anónimo (Bento Morganti) (Ed.): "Num. 1", en: O Anonymo. Repartido pelas semanas, para divertimento e utilidade do publico, Vol.1\001 (1752), pp. 1-8, editado en: Ertler, Klaus-Dieter / Fernández, Hans (Ed.): Los "Spectators" en el contexto internacional. Edición digital, Graz 2011- . hdl.handle.net/11471/513.20.4488 [consultado el: ].


Nivel 1►

Num.°.1

Effeitos da Prudencia, e Providencia

Nivel 2► Valha-me Deos, que nem ainda neste retiro deixao de continuar as perseguiҫoens! O certo he, que agora conheҫo ser verdade, e maxima bem certa dizerem, que o lugar mais seguro para hum homem deixar de ser tentado, nam he o Dezerto, nem a abstracҫão da communicaҫam da Corte, porque a experiencia me mostra, que em quanto nella estive, era menos perseguido de perguntas impertinentes, e menos obrigado de meus amigos a moralizar sobre os muitos, e diversos assumptos, que cada dia offerece ao discurso a continua variedade de huma Corte; porque nella não falta quem por sua devoҫão se empregue neste exercicio; mas aqui adonde me parecia que ninguem daria comigo, e que occulto aos olhos de todos, até a lembranҫa se extinguiria, verme importunado, perseguido, e obrigado a conservar correspondencias, he até dode pòde chegar a desgraҫa para quem escolheo por fortuna livrarse destes laberyntos. Mas como quem se retira, nem por isso de todo morre, não sei que espirito chocalheiro deo com a lingoa nos dentes, e [2] pelo rasto vierão dar comigo humas palavras Gregas, com o que fiquei alguma cousa assustado, e disse: Olá! temos palavras desconhecidas, certamente he Satyra, que anda perdida, e vem ter comigo para que lhe ensine o caminho da Corte, pois em boa mão veyo cahir, livre está que se veja, ainda que bem poderia se fosse na verdade satyra, correr sem muito perigo, porque não haveria muitos, que a entendessem; e como neste citio não faltão pedras, eu lhe porei huma bem grande em sima, e farey com que ache no mesmo berҫo a sepultura; pois sempre me aborreceo, e muito mais me escandalizou a falta de caridade, que vejo practicar com o proximo, andando muita gente espreitando obras deste genero, e à custa de se empregar muito tempo no trabalho de muitas copias, fazem gosto de dilacerar o credito, e reputaҫão de algumas pessoas contra quem não tem nem escandalo, nem queixa, fazendo-se parciaes do Autor, que ordinariamente se não conhece, só para ajudarem a dizer mal de quem não tem recebido o minimo agravo. Finalmente vamos ao que hia dizendo: dispondo eu o enterro do tal papel olhei para elle mais de vagar com quem se despedia para sempre; li-o com mais alguma attenҫão para lhe dar o ultimo vale, ex se não quando, acho tudo pelo contrario do que eu cuidava; pois era simplezmente hum lugar, que se encontra nos fragmentos dos antigos Poetas.

Tanto que as li, dei hũas poucas de voltas ao juizo para ver se atinava com o que para que vierão parar à minha mão; e certamente ainda a estas horas andaria a tombos sobre o para q̃ será, para q̃ não sera, se não achase na folha de dentro duas regras de hum meo amigo, q̃ sucintamente me dizia, que como passara pelos olhos hũa tarde indo a passeyo, hum livro que lhe emprestàrão, encontrara esta passagem, e nella se ditivera muito, porque lhe parecera dizer: Cita/Lema► Que a fortuna favorece aos que tem boa intenҫão, e muita prudencia. ◀Cita/Lema E assim me pedia fizesse disto hũa ap-[3]licaҫão agradavel, que servisse de alguma instrucҫão, porque queria ler a minha resposta em companhia de bons amigos. Lá me assustou a suplica pela difficuldade, por não ser facil atinar com o gosto de todos: com tudo puz mãos à obra, entrei a revolver o que pude, até que achei não seria mal applicada para discorrer sobre a prudencia humana, e a Providencia Divina, e como pude fui armando este pequeno discurso, queira Deos, que acerte com cousa que dê gosto, ou ao menos de que se não diga muito mal.

Entre as advertencias, que o famozo Lourenҫo Gracian faz no seu pequeno livro intitulado o homem de Corte, aos que querem adiantarse nella, lhe aconselha que se ajuntem, e unão àquelles q̃ tem a seu favor a fortuna evitando a companhia dos desgraҫados. Ainda que esta maxima seja indigna de hum homem honesto, pòde ser util para aquelles, que procurão estabelecerse, e firmarse no mundo. He certo, que hũa grande parte do que se chama boa, ou mà fortuna procede das certas, ou falsas medidas, que se tomam para o estabelecimento. Quando se ouve queixar hum homem de que foi infeliz em todas as suas emprezas, bem se pòde entender, que he por ser falto de habilidade, e que não tem engenho para solicitar por mais caminhos a fortuna, ao menos para adquirir o necessario. Exemplum► Sobre este principio he, que o Cardeal de Richelieu costuma dizer, que as palavras sem fortuna, e imprudente erão synonimas, e significavam o mesmo. Mas se este Cardeal tinha muita prudencia, e felicidade, seu famozo antagonista o Conde de Olivares foi desgraҫado na Corte de Madrid, por q̃ decahio em todas as suas emprezas, ficando frustrados, e inuteis todos os seus designios, e isto he o mesmo que acuzalo indirectamente de imprudencia, como observa hum illustre author. ◀Exemplum

Exemplum► Cicero exhortou aos Romanos para que escolhecem a Pompeu por seu General, porque tinha valor, e fortuna. ◀Exemplum

[4] Pode ser tambem que huma continuaҫam seguida de muita felicidade, conforme o que acabamos de dizer seja hum dos finaes por donde se conheҫa hum espirito sabio, e prudente; Exemplum► e por este motivo não só o Dictador Sylla, mas tambem muitos dos Imperadores Romanos tomaram o Titulo de Feliz e Fortunado, ◀Exemplum como ainda hoje se observa sobre as medalhas daquelle tempo. Com effeito parece que os Pagãos estimavão mais hum homem por conta da sua felicidade, que por qualquer outra boa qualidade, o que parece muito natural daquelles q̃ não tem huma firme, e certa persuaҫão, ou que não crem, que ha outra vida mais que a presente. E como se nos pòde representar hum homem cheyo de resplandecentes felicidades, se não tiver algum merecimento extraordinario, q̃ se distinga aos olhos do Soberano Monarca do Universo, ainda que este escape à nossa vista? De que procede que os Heroes de Homero, e de Virgilio não formam algum designio, ou não descarregam hum só golpe senão debaixo da protecҫão de alguma divindade, que os protegia? Estes Poetas entendiam sem duvida, que não podia haver mayor honra que a de ser favorecido dos Deozes, e que o melhor elogio com que podia ornar hum homem era referir aquelles favores, que mostrão naturalmente hum merecimento distinto na pessoa, que os recebe.

Os que crem as penas, e os premios da outra vida cahem em hum grande absurdo, se julgão o merecimento de hum homem pelo sucesso de suas emprezas; mas se entendemos, que todo o circulo da nossa existencia não excede os limites da vida, e da morte, então será certo, e não pode entrar em duvida, que a felicidade de hum homem he hum sinal certo do seu merecimento real, porque não ha mais, que este mundo aonde a Divindade pode recompensar a sua virtude; e não se podendo duvidar, que a existencia da alma he eterna, e que na outra vida he que ha de gozar os verdadeiros premios de seus merecimentos, [5] não deixa de ser absurdo grande julgarse pelos successos de suas acҫões,qual seja o seu verdadeiro merecimẽto. Isto mesmo parece que quiz confirmar hum gentio incredulo aos sentimentos de fé, queixando-se pouco antes da sua morte daquella aparente virtude sobre que sómente se estabelecem as gloriosas acҫões desta vida, como refere Plutarco na vida de Bruto: Cita/Lema► Infeliz virtude, e quanto me enganaste em te servir! Entendi que eras hum ser real, e por isso me cheguei tanto para ti; mas agora conheҫo, que não es mais, q̃ hum nome vaõ, hum fantasma, e vil escrava de fortuna. ◀Cita/Lema Assim se queixon porque não conhecia que ainda havia felicidades que esperar na outra vida, as quaes servem de premio à verdadeira virtude.

Mas para voltarmos ao nosso primeiro ponto; ainda que a prudencia seja em grande parte a causa da nossa boa, ou ma fortuna neste mundo; com tudo ha mil accidentes repentinos capazes de arruinar os designios mais concertados, e mais prudentes da sabedoria humana. O premio da carreira, nem sempre he para os que se entende ser os mais velozes, nem a victoria de huma batalha para os que parecem mais valerosos. Não ha mais que huma sabedoria infinita, que póde ter hum imperio absoluto sobre as causas, e os effeitos da natureza, e o grao mais alto da prudencia humana não pòde afastar todos os obstaculos, que pòdem embaraҫar a execuҫão de nossos intentos. Mas que digo? Muitas vezes succede, que a prudencia ainda sendo sempre acompanhada de huma grande precauҫão impede hum homem a ser feliz, da mesma sorte como se não tivesse prudencia alguma. Huma pessoa que não olha senão para um fim racional, e que segue as luzes da prudencia, não consegue ordinariamente aquelles bons successos repentinos que são de ordinario effeito de hum temperamento sanguineo, ou de huma feliz temeridade; e por isso póde ser, que se diga como proverbio: Cita/Lema► Que a fortuna como as outras Damas favorece mais depressa a mocidade, que avelhice. ◀Cita/Lema

[6] Mas já, que as nossas luzes sem são curtas, e que nos achamos expostos a huma variedade de accidentes, bem se póde seguir o avizo, e advertencia, que faz hum celebre Author Inglez, dizendo a outro respeito, que se tivesse lugar de pôr em duvida huma Providencia, desejaria com grande efficacia, que houvesse hum ser de huma sabedoria, e bondade infinita, que tivesse cuidado de nos dirigir em todas as nossas acҫoens, e emprezas neste mundo, para não obrarmos cousa alguma, que não fosse justa, e muito cõforme com a vontade do summo Author da natureza.

Não deixa de ser huma grande, e louca presumpҫão atribuir os felices sucessos à nossa prudencia, e não à bondade Divina. Exemplum► Quando a Armada Hespanhola, que trazia o nome de invencivel se vio destroҫada sobre as costas de Inglaterra, a Rainha Isabel para conservar a memoria de tão grande sucesso, fez bater huma medalha com huma idéa excellente. Todos sabem que o Rey de Hespanha Felippe II. e outros diversos Monarcas inimigos desta illustre Rainha para lhe uzurpar a gloria deste triunfo, quizerão antes atribuir a ruina desta armada à violencia dos ventos, e não que ao valor dos Inglezes A. Rainha em lugar de se queixar de que assim lhe querião diminuir a gloria que disto lhe resultava, se filicitou muito de ser protegida do Ceo nesta occasião, e mandou gravar na referida Medalha alguns Navios combatidos das ondas, e que cahiam huns sobre outros , com esta piadosa inscripҫam, que cercava a medalha: ◀Exemplum Cita/Lema► Afflavit Deus, & dissipantur. Que dizer Deos soprou, e dissipou tudo. ◀Cita/Lema

Exemplum► A Historia Grega fala de hum famoso General, que depois de ser favorecido da fortuna, e ter ganhado muitas batalhas, fazendo hum dia relaҫão destes successos a seus amigos, no fim de cada hum delles acrescentava: Pelo menos a fortuna não teve nisto parte alguma. Não me lembra o nome deste General; mas a mesma historia refere, que dali em diante não pode conseguir mais algum [7] bom successo, e que decahio em todas as suas empresas. ◀Exemplum

Se a vaidade, e a boa oppinião, que hum homem tem de seus talentos enfadão a todas as pessoas sensatas, e virtuosas, não se pode duvidar, q̃ desagradem infinitamente mais ao Creador do Universo, q̃ ama hum espirito humilde; pois pelas diferentes destribuiҫoens , que faz neste mundo, procura convencernos de que não he à nossa prudencia, nem à nossa habilidade, que somos devedores dos felices successos, que conseguimos nesta vida, mas fim à sua infinita Providencia,que he a que destribue tudo quanto recebemos.

Exemplum► Mas já, que se misturarão neste discurso alguns pedaҫos de historia, entendo, que se não hade tomar muito a mal, que se acabe com hum pequeno conto de Persas. Fabel► Em certa occasião cahio de hũa nuvem huma gota de agoa no mar, e cõfundida naquelles abismos entrou a falar comsigo mesmo, e aclamar. Desgraҫada de mim! Que sou huma cousa tão pequena neste vasto Occeano, e q̃ a minha existẽcia me parece inutil no Universo; vejome reduzida quasi a nada, e estou muito debaixo das mais pequenas obras da Divindade. A este tempo succedeo, que huma ostra, que estava no mesmo citio abrio as conchas, e a recebeo estando ella nesta exclamaҫão. A gota de agoa pouco a pouco se foi fazendo dura, atè que finalmente se formou em huma perola, a qual depois de muitas aventuras he aquella formoza perola, que presentemente serve de adorno ao Diàdema do grande Sophi da Persia. ◀Fabel ◀Exemplum Com esta fabula pertende aquella Nacão instruir os seus nos effeitos da Providencia, mostrando, que nada obra por acazo; as mais reflexoens faҫa cada hum como entender, porque tambem quero deixar alguma cousa para os Discursos dos meus leitores.

Metatextualidad► Parece, que tenho cumprido ou bem, ou mal com o que se me pedio, e continuarei neste divertimento, ainda que serio, todas as semanas, e me persuado, que o pu-[8]blico não hade desagradecer este trabalho, porque ao menos tirarà destes papeis aquella utilidade, que não pode tirar dos muitos, que incessantemente se publicão: e fazendo boa aceitaҫão delles, consiguirá a Nasҫão Portugueza a gloria de tambem nisto imitar algumas Naҫoens das mais polidas da Europa, a donde os papeis desta qualidade fizerão grande fortuna, e se em Portugal a não fizerem, não será delles, mas serà de mim, que tambem como os mais estou sogeito âs disposiҫões occultas da Providencia, que determina tudo a seu arbitrio. ◀Metatextualidad ◀Nivel 2

Lisboa:

Na Officina de Pedro Ferreira Impressor da Augustissima Rainha Nossa Senhora.

Com todas as licenças necesarias.

Achar-se-ha este papel, e os mais, que se seguirem na mesma Impressam, e nas loges de Antonio Rodrigues na Rua Nova, e de Jozé da Costa defronte de Santo Antonio. ◀Nivel 1