UMA LEITURA INSTRUTIVA E CATIVANTE
O CONTROLE DO IMAGINÁRIO
Este texto foi originalmente publicado como resenha in Poetica.
Zeitschrift für Sprach- und Literaturwissenschaft, Karlheinz Stierle (org.),
vol. 23, 3–4, Fink, Munique 1991, por ocasião do aparecimento da tradução de O
controle do imaginário. Luiz Costa Lima, Die Kontrolle des Imaginären. Vernunft
und Imagination in der Moderne. Tradução alemã de Armin Biermann, Frankfurt a/M.
Suhrkamp, 1990, 368 paginas.
Desde os anos do boom da literatura
latino-americana, os europeus, e sobretudo eles, consideram a América Latina uma
das principais regiões em que se escreve literatura moderna ou pós-moderna.
Menos conhecidas, porém, são sua teoria e história literárias; não obstante
sejam tão importantes quanto a literatura. Elas não só elaboraram informações
instrutivas sobre a cultura do continente, como desenvolveram perspectivas
interessantes a respeito da herança cultural européia, de um ponto de vista
não-familiar aos próprios europeus. Quem mais impressiona entre os expoentes
dessa teoria da literatura é o brasileiro Luiz Costa Lima. Sua obra revela a
virtuosidade na escrita de ensaios, a força estimuladora que move seus
interesses em história, teoria da literatura, sociologia e epistemologia. Isto
sem mencionar sua vasta erudição. Erudição que lhe permite, por exemplo, em Sociedade e discurso ficcional,apresentar contribuições precisas tanto sóbre a originalidade das
crônicas de Fernão Lopes quanto sobre o trajeto que percorre a autobiografia de
Secretum,de Petrarca, a De propria vita,de Cardano, e a
Vita,de Cellini, ou sobre a
importãncia da Scienza Nuova,de
Vico, para o livro sobre a mímesis,obra maior de Erich Auerbach.
Depois de publicar diversos artigos em lingua alemã, temos pela
primeira vez a tradução integral de um livro de Costa Lima:
[1]
trata-se de
controle do imaginário. Razão e
imaginação nos tempos modernos. Otema desta coleção de ensaios é a categoria do
ficcional, num duplo sentido. Num primeiro momento, o autor trata – de certo
modo – da apologia e da legitimação da categoria; depois, através de uma série
de exemplos, diferencia o ficcional do real, tal como o desenham textos da
historiografia e das ciências sociais. A primeira parte do livro, a meu ver
sobremaneira esclarecedora, conta a história da censura interna e externa que
parece ter sido exercida sobre o „imaginario“, o mais tardar já a partir do
advento do cristianismo. De acordo com Costa Lima, combina-se nela o veto social
contra a ficção e a pretensão autoritária de limitar e dominar a subjetividade.
O autor rastreia o poder desses controles que se impõem, às vezes de forma óbvia, às vezes de forma mais sutil, da Idade Média até o Romantismo. A
atenção critica de Costa Lima aponta sobretudo ao „racionalismo ético“ da
poética classicista da Renascença, a qual era contrária à ficção. Na segunda
parte do livro, a discussão do conceito de ficcionalidade recorre a três
casos-limite que são de grande interesse para a discussão de lingua alemã,
precisamente por não fazerem parte de nosso cânone. Objeto da interpretação
instigante e da agudeza do argumento do autor são a historiografia de Jules
Michelet, tida na França, a partir de Barthes, como a grande „literatura“
novecentista; Os sertões,de
Euclides da Cunha, relato sociologico-etnologico de uma guerra que recentemente
ganhou nova fama literária por servir como „fonte“ a La Guerra
del fin del mundo,de Mario Vargas Llosa; por
fim, o penúltimo romance de Machado de Assis, Esaù e Jacó
(1904), obra que também no Brasil contou com poucos leitores.
O percurso argumentativo da primeira parte, com seus eixos „veto ao
ficcional“/ „compromisso com a razão“, revela a intenção do livro. Não se trata
apenas de analisar o ficcional, mas também de apresentar uma espécie de Défense et illustration da categoria. Este aspecto do
pressuposto do autor complementa a reconstrução histórica e a distinção
conceptual e até os substitui em algumas passagens, dando a O
controle do imaginário o elã que o distingue em particular de tratados
comparáveis, porém menos engajados. Entretanto, um engajamento que avança além
da definição para o realce ilustrativo da categoria da ficcionalidade, avivando
argumentos. Aliás, em relação ao entusiasmo em favor do „imaginario“ - que é
socialmente controlado e, portanto, deve ser liberado –, eu também o
compartilho. Devo, contudo, ser mais preciso: o compartilho do ponto de vista
poetológico, porém, nem sempre tenho a mesma identificação do ponto de vista
teórico.
Em sua definição do „texto ficcional“, Costa Lima desenvolve uma
estratégia argumentativa que se funda sobretudo em dois aspectos. Por um lado, o
autor julga oportuno separar, com muito mais clareza do que se costuma fazer,
textos ficcionais de textos teóricos, em especial, textos sociológicos e
históricos. No livro, os últimos são representados por Michelet e Euclides da
Cunha. Por outro lado, os textos ficcionais, assim diferenciados, recebem uma
distinção não apenas no sentido da separação, mas também no sentido da
qualidade, à medida que abrigam critérios de distinção que, na
poética contemporânea, podem invocar grande prestígio. Diz o autor no final da
leitura de Esaú e Jacó:
Dentro dos padrões da modernidade, para que uma obra seja
reconhecida como ficcional é preciso que, sobre ser formada por „quase
enunciados“ – i.e., enunciados sobre os quais não é cabível a decisão de ser
verdadeiros ou falsos – estes choquem as expectativas do receptor, senão mesmo
as irritem (p. 344 da tradução alemã, p. 259 da segunda edição brasileira).
Nesta passagem, sem dúvida, Costa Lima apreende um traço decisivo da
modernidade poetológica. Pergunto-me, porém, se os critérios com base no ato de
transgressão, ou seja, no ato de rompimento de determinados horizontes de
expectativa – atos que contemporaneamente entendemos como definidores da modernidade de um texto –, pergunto-me se tais critérios
são realmente adequados para medir também o grau de ficcionalidade desses mesmos textos. Neste caso, textos da literatura
de entretenimento, os chamados best-sellers, ao obedecerem às convenções de seu
gênero e corresponder de forma exata ao horizonte de expectativa do público,
devem ser explicitamente concebidos como não-ficcionais e, por isso, „realistas“
ou „históricos“. Em contrapartida, textos que falsificam certos esquemas
genéricos – como os anti-romances policiais de Leonardo Sciascia –, revelariam,
se a regra for valida, a sua natureza ficcional justamente por serem
falsificações. Imagino, no entanto, se o caso não é outro, ou seja, se não é
precisamente a quebra de expectativas do leitor, motivada por hábitos literários
já consagrados, o elemento que revela o mais poderoso efeito
de real de que dispõe a literatura para desvendar ou encobrir sua
ficcionalidade.
[2]
Questionável parece-me também o resultado da comparação entre textos
ficcionais e textos escritos por historiadores ou cientistas sociais que Costa
Lima nos apresenta em capítulos sobre Euclides da Cunha e Michelet. Em
referência a Wolfgang Iser, Costa Lima vê a peculiaridade determinante de textos
ficcionais em seus „lugares vazios“, ao passo que parece
tomar por garantida a ausência de „lugares vazios análogos“ nos textos de
historiadores e cientistas sociais. À diferença do autor, eu recomendaria não
contrapor simplesmente textos ficcionais ou literários a um complexo fechado de
textos de historiadores ou cientistas sociais, mas, no que se
refere a este complexo tópico, estabelecer outras diferenciações. Afinal, textos
científicos também dependem, em medida diferente, por certo, da
narratividade,
[3]
conforme a qual ampliam, nolentes volentes,seu número de „lugares vazios“ ou o reduzem – no caso de
um ethos científico mais estrito e, portanto,
antinarrativo. Ademais, o que impede a leitura de textos literários sob
perspectivas históricas ou, inversamente, a leitura de textos históricos sob
perspectivas literárias? A leitura de textos históricos ou teóricos, seja qual
for a quantidade e a qualidade de seus „lugares vazios“, confirma geralmente a
pretensão original de seus autores, como se estes reclamassem autoridade
científica, por assim dizer. Quando a autoridade se perde – o que é muitas vezes
inevitável, dada a crescente distância temporal – são principalmente textos
filosóficos que migram, mudando seu estatuto, do campo da recepção científica
para o da recepção literária: migração que poderíamos entender tanto como exilio
humilhante quanto como carreira bemsucedida.
Ao insistir na apoteose do imaginário e deixar sua descrição em segundo
plano, Costa Lima tende, às vezes, inclusive na primeira parte de sua
apresentação dedicada à história literária, a uma certa visão parcial. E é esta
visão que acaba estimulando a propria confrontação acirrada que dá origem e
explica o sentido do título do livro. Costa Lima descobre num campo o partido
das forças rebeldes, isto é, as forças da imaginação e da subjetividade. Já no
outro campo, identifica o partido da repressão àquelas forças, partido
representado pelas instâncias da igreja e do estado que subjugam a poética da
Renascença, exercendo um controle inteiramente hostil à ficção. Há, sem dúvida,
bons motivos para contar a história da literatura renascentista tomando como
ponto de partida esse tipo de controle ou o „racionalismo ético“ que ele impõe.
Mas é preciso não perder de vista o prego que tal modelo de narrativa deve
pagar, pois se se trata de uma cronologia conseqüente, tal história da ficção
caminhará da opressão exercida pelos classicistas até a libertação promovida
pelos românticos. No entanto, tal narrativa, ao menos no quadro em que Costa
Lima situa a literatura renascentista, não poderá levar em conta, por exemplo,
Ariosto, tampouco Rabelais. No tocante à evolução da poética no Cinquecento,todos os argumentos
neoplatônicos deverão ser eliminados e, neste sentido, a ausência de um
poetólogo antiaristotélico como Francesco Patrizi da Cherso
[4]
è reveladora por ser conseqüente. Algo parecido ocorre
inclusive com a categoria do verossímil. Aristóteles já a reivindicava para a
literatura (Dichtung), opondo-a à categoria da verdade
historiográfica. No entanto, para Costa Lima, essa categoria aparece como
produto específico da poética renascentista. Ainda: um conceito que corresponde
quase por inteiro à categoria do „verdadeiro“, ocupando o lugar poetológico
antes destinado à categoria aristotélica do „possível“:
A mímesis não dizia respeito senão ao
possível [...]; seus limites não eram outros senão o do passível de ser
concebido. Entre os renascentistas, ao contrário, a posição do possível sera
ocupada pela categoria do verossímil que, evidentemente, depende do que já é, do
atual, então confundido com o verdadeiro (p. 42 e seguintes da tradução alemã;
p. 32 da segunda edição brasileira).
Tal visão parcial se origina, na maioria dos casos, no afã de
monumentalizar a resistência contra a ficcionalidade e a imaginação, valores que
aqui ganham de certa forma um tom que se poderia denominar patético. Não
obstante, O controle do imaginário é uma leitura
instrutiva e cativante, cuja importância justifica pienamente o grande
investimento necessário para sua edição em lingua alemã.
Tradução de Johannes Kretschmer
1 |
A maioria das traduções mais antigas dos ensaios foi
publicada em uma série de Atas de Congresso. Cf. Bernard
Cerquiglini/Hans Ulrich Gumbrecht (orgs.), Der Diskurs der
Literatur-und Sprachhistorie (stw 411), Frankfurt a/M.1983,
pp. 367–404 („Literaturkritik und Literaturgeschichte in der
brasilianischen Kultur des 19. Jahrhunderts“); Hans Ulrich
Gumbrecht/Ursula Link-Heer (orgs.), Epochenschwellen und Epochenstrukturen im Diskurs
der Literatur- und Sprachhistorie (stw 486),
Frankfurt a/M. 1985, pp. 424–440 („Die Akklimatisierung des
Sinnhorizonts der Romantik in Brasilien“); Hans Ulrich Gumbrecht/K.
Ludwig Pfeiffer (orgs.), Stil. Geschichten und
Funktionen eines kulturwissenschaftlichen Diskurselements
(stw 633), Frankfurt a/M. 1986, pp. 289–313 („Historie und
metahistorische Kategorien bei Erich Auerbach“); Hans Ulrich
Gumbrecht/K. Ludwig Pfeiffer (orgs.), Materialität
der Kommunikation (stw 750), Frankfurt a/M. 1988,
pp. 763–775 („Gnosis und Antiphysis bei Borges“); Hans Ulrich
Gumbrecht/K. Ludwig Pfeiffer (orgs.), Paradoxie,
Dissonanzen, Zusammenbrüche (stw 925), Frankfurt a/M. 1991,
pp. 571–588 („Tropischer Kontrapunkt der Postmoderne?“). |
2 |
A respeito, cf. explicações do conceito que me parecem mais
convincentes: K. Eibl, „‚Realismus‘ als Widerlegung von Literatur“,
in Poetica. Zeitschrift für Sprach- und
Literaturwissenschaft,org. por
Karlheinz Stierle, vol. 6, Fink, Munique 1974, pp. 456–467,
principalmente p. 465 (onde é definido o efeito do real enquanto
„falsificação de elementos do sistema criptoteórico da
literatura“). |
3 |
Cf. neste contexto – em referência a A.J. Greimas – Peter
V. Zima, Ideologie und Theorie,Tübingen 1989, p. 244 e seguintes e
passim. |
4 |
Cf. acerca de Patrizi que realizou, ein nome da admiratio,uma
campanha ein favor da autonomia da ficção „face às exigências da
verdade“, por exemplo, Andreas Kablitz, „Dichtung und Wahrheit. Zur
Legitimität der Fiktion in der Poetologie des Cinquecento“, in Ritterepik der Renaissance,org. por Klaus W. Hempfer, Akten des deutsch-italienischen
Kolloquiums Berlin, 30.3–2.4, 1987 (Text und Kontext, vol. 6),
Stuttgart 1989, pp. 77–122, equi pp. 120–122; ou Gerhard Schröder,
Logos und List. Zur Entwicklung der Ästhetik
in der frühen Neuzeit,Königstein/Taunus 1985, pp. 77–79 e passim. Schröder
considera a poética renascentista o processo onde „a literatura se
separa da realidade e da verdade“; essa separação faz com que se
constitua o „campo da fantasia artística enquanto campo dotado de
urna propria Ratio“ (p. 77 e p. 83); a análise de Schröder representa, por assim
dizer, a história complementar da narrativa de Costa Lima: urma
história que age corn energia semelhante (e semelhante vontade de
estilização) e dramatiza o que Costa Lima deixa de lado ou
suprime. |